Foto Leda Costa |
Fiz do
Centenário novamente minha casa, porém, desta vez, povoada por várias outras pessoas que dele
queriam fazer o mesmo. Essas outras pessoas eram em sua ampla maioria
torcedores do Peñarol, de Montevidéu, também conhecidos como los manyas.
Quando fui comprar ingresso escolhi a
Tribuna Amsterdam, a mais popular e barata, e que costuma ser frequentada pela principal
barra do Peñarol. Fui alertada dos perigos que corria. O atendente tentou me
convencer de que era preciso evitar essa Tribuna, já que tinha péssima
visibilidade e, sobretudo, era muito perigosa, principalmente para uma mulher
sozinha. Quando insisti na compra, o
rapaz fez um gesto com a cabeça como quem dissesse: “é por sua conta e risco”.
E enquanto preparava o troco, me deu um último aviso: “não leve nada de valor
ao estádio”.
Não fiquei assustada com esses
conselhos, porque já estou acostumada com esse tipo de percepção em relação aos
jogos de futebol, em especial, às torcidas. Volte e meia me dizem coisas bem
parecidas. O imaginário negativo que gravita as torcidas de futebol,
relacionando-as diretamente à violência, é fomentado tanto por fatos concretos
quanto pelas abordagens dada em especial pela mídia. Mídia que frequentemente
faz dessa mesma violência - a qual ela diz combater - um espetáculo com direito a imagens feitas em close
de chutes e socos, sequencialmente repetidas.
Porém, o trânsito mata muito mais que o
futebol e dificilmente alguém me diria: Leda, não dirija. Do mesmo modo,
espetáculos que reúnem grandes multidões como shows de artistas famosos não
oferecem total segurança, podendo derivar em tumultos, roubos e uma série de
episódios violentos. Mas dificilmente assim eles são representados e creio que
isso ocorra porque o público que os frequenta não costuma ser associado a
tumulto.
Os torcedores, ao contrário, são quase sempre percebidos como arruaceiros
em potencial.
O que se evidencia no caso do futebol é
a presença de um conjunto de estereótipos a partir dos quais a torcida é vista
e interpretada, sobretudo se parte dela estiver anexada às camadas
mais populares, como é o caso da principal barra do Peñarol.
Obviamente que cuidados são necessários,
porque o mundo, de um modo geral, sempre nos exige precauções.
No caso dos estádios e das torcidas não há necessidade de pânico.
Fui a Tribuna Amsterdam e de lá voltei sã e salva, levemente chamuscada, bastante descabelada, mas feliz da vida. Meu currículo futebolístico agradece.
O Centenário com torcida e jogo
O Centenário se localiza no imenso e belíssimo Parque Batlle,
onde também se encontram outros espaços esportivos: o Velódromo Municipal
construído em 1938, o pequeno estádio Parque Palermo, inaugurado na década de
1930 e que pertence ao Central Español, e, finalmente, o Estádio Mendez
Piana, do Club Sportivo Miramar Misiones.
Não a fui a nenhuma desas três instalações esportivas, o que para a Caravana beira ao imperdoável.
Mas a verdade é que naquele domingo, 28 de novembro de 2015, eu estava
absolutamente obcecada pelo Centenário. Então, o máximo que consegui foi vagar
um pouco pelo parque Batlle, mas sempre mantendo esse estádio sob a minha mira.
E nesse vagar percebi que se o Brasil é o país do futebol, o Uruguai não fica nada a dever. A bola é uma companheira constante dos nossos vizinhos, por isso, mesmo do lado de fora do Centenário, o futebol marcava presença em diversos cantos do parque Batlle.
Uma pelada comum. Foto Leda Costa |
Um campeonato infantil. Foto Leda Costa |
Mas repito, não conseguia tirar os olhos do Centenário.
Mas sempre há os subversivos:
Antes de entrar no estádio me chamou a atenção as placas indicando o que pode e não pode dentro do Centenário. Veremos que nem todos os torcedores seguem à risca essas orientações e a vigilância também não é rigorosa para fazer valer o que está escrito nesses cartazes.
Dos itens acima listados, somente o uso de mochilas grandes é de fato evitado, pelos próprios torcedores. Já o restante é fartamente usado, o que não vejo como um aspecto negativo, mas como uma atitude que mostra certa resistência dos torcedores diante de imposições feitas de cima para baixo e, algumas delas, não justificáveis.
Posso compreender o receio em ralação a alguns acessórios como sinalizador. Mas por que proibir papel picado e serpentina? A preocupação com a segurança nos estádios é um típico fomentador de ações imediatistas que beiram à arbitrariedade e que geralmente parecem pressupor que o grande problema dos estádios são os torcedores que os frequentam.
Esquece-se, entretanto, que falar de segurança envolve questões que, muitas vezes, passam despercebidas ou não são devidamente consideradas. Embora, particularmente, tenha uma série de críticas ao culto às arenas e aos desenfreados processos de modernização e higienização, acredito que os estádios precisam ser locais onde se possa torcer festivamente, de modos variados, e com o máximo de preservação da integridade física das pessoas.
Digo e repito que o Centenário é fascinante devido as marcas do tempo que exibe em seu cimento, porém é fundamental que as estruturas arquitetônicas não ofereçam risco de acidentes. No Brasil, já tivemos diversos casos de mortos e feridos por causa da falta de manutenção dos estádios. Queda de pedaço da arquibancada no Maracanã, em 1992, desabamento de arquibancada como ocorreu na Fonte Nova, em Salvador, são também formas de violência e que não estão relacionadas ao comportamento dos torcedores.
Como já comentei, fui avisada dos perigos da torcida da Tribuna Amsterdam, mas o que de fato senti medo foi de cair das escadas que dão acesso às arquibancadas. Do corrimão, a visão que se tinha lá de baixo era um amontoado de materiais de obra. E não é exagero o temor de uma queda, porque a mureta de apoio era baixa e um súbito desequilíbrio ou mesmo o empurrão de alguém, proposital ou não, podia - e pode - derivar num acidente fatal.
Foto Leda Costa |
Visão da mureta das escadas: uma espécie de fosso cheia de material de obra. Foto Leda Costa |
Respirei fundo e enfrentei meu medo de cair, subi as escadas e me juntei aos manyas que se espremiam nos corredores. O Centenário está longe de oferecer conforto, pelo menos nas tribunas mais populares, como é o caso da Amsterdam. Portanto, nesse sentido, é um espaço perfeito para torcedores que apreciam fruir o futebol de modo, idealizadamente mais passional, que envolva certo enfrentamento de obstáculos para poder assistir ao clube de coração.
Esse parece ser o caso de vários torcedores do Peñarol.
Enquanto a arena não vem: Los Manya no
Centenário
É provável que alguns jogos da
Libertadores de 2016 com mando de campo do Peñarol sejam realizados em seu novo
estádio cuja construção começou em 2014 e a inauguração está prevista para
fevereiro deste ano.
Seria o terceiro estádio de propriedade
do Peñarol, sendo o primeiro deles o de Pocitos, inaugurado em 1921 e fechado em 1933 e o segundo, José Pedro
Damiani, também conhecido como estádio das Acácias, inaugurado em 1916 durante
as comemorações dos 25 anos do clube.
O José Pedro ainda existe, mas somente é usado pelas categorias de base.
Enquanto a arena não vem, os jogos do
Peñarol continuarão a ser realizados no Centenário, onde na tribuna Amsterdam se
reúnem los manyas como também são conhecidos seus torcedores.
Assim como "bacalhau" (Vasco) ou "urubu" (Flamengo), manya
surge inicialmente como uma denominação pejorativa. Tudo teria começado com o jogador
Carlos Scarone filho de um
fanático torcedor do Peñarol, o imigrante italiano José Scarone. Carlos tornou-se jogador de futebol e atuou pelo Peñarol, então CURCC, sendo campeão uruguaio em 1913. Em 1914, após uma breve
passagem pelo Boca Junior, da Argentina, Carlos retornou ao Uruguai e aceitou um convite para jogar no Nacional. Inconformado com essa decisão o sr. José
Scarone perguntou ao filho porque ele não voltaria para o Peñarol, o que Carlos
responde: “¿¿Ir
a Peñarol??¿¿A qué?? Mangiare mierda??”
A palavra mangiare sofreu uma
castelhanização e tornou-se “manya” expressão usada por Carlos Scarone durante um jogo
entre Nacional x Peñarol. Irritado com as faltas que recebeu ao longo dessa
partida, Carlos, em certo momento, gritou “Jueguen ustedes, que son unos manyas”.
Foto Leda Costa |
O ano em que Carlos Scarone se recusa a jogar no clube de coração de pai é o mesmo em que o Peñarol passa a ser assim denominado oficialmente. Até essa época havia o Central Uruguay Railway Cricket Club, o CURCC, entidade fundada por operários da estrada de ferro Central Uruguay Railway, em 1891. Porém, já em 1990, o CURCC era popularente conhecido como Peñarol que é o nome do bairro onde se localizava a ferrovia que lhe deu origem.
Anúncio da primeira partida do campeonato uruguaio.,Albion e Peñarol (CURCC). Museu do futebol, Uruguai, Foto Leda Costa |
A memória de sua origem ferroviária se mantem viva nas cores do uniforme, escolhidos em homenagem a Locomotiva Rocket que ganhou fama mundial no final do século XIX. E se mantem viva no apelido Carbonero pelo qual o Peñarol também é conhecido pelos torcedores, em referência ao carvão que alimentava os trens.
É o carvão (preto) e o ouro (amarelo) que correm pelas veias como diz uma das
músicas cantadas pela torcida. Porém, há quem prefira deixar marcado na pele como é o
caso de uma torcedora a quem pedi para tirar uma foto da tatuagem que carregava
nas costas. Ela prontamente me atendeu, orgulhosa de mostrar o escudo.
Foto Leda Costa |
Aliás, particularmente, fiquei encantada em ver muitas mulheres entre a torcida, em quantidade maior do que costumo ver no Brasil, pelo menos nos estádios do Rio de Janeiro. Mulheres de
todos os tipos, idades, com filhos, sem filhos, acompanhas ou sozinhas, o fato
é que estavam lá Centenário. Creio que ainda existe certa dificuldade em se associar a mulher
ao futebol. Mas o fato é que elas também torcem, frequentam arquibancada,
xingam, têm superstições, cantam e pulam
e se empurram junto com outros torcedores, inclusive aqueles mais
“temidos” dos quais fui aconselhada a
manter distância.
Essa "temida" torcida da Tribuna Amsterdam canta o tempo inteiro, mesmo antes de o jogo
começar. Assim que pus os pés no estádio, podia ouvir o bombo de murga
tocando e ditando o ritmo dos cânticos e do balanço dos corpos que se espremiam
em uma das entradas das arquibancadas.
Durante o jogo não ouvi nenhum tipo de xingamento direcionado
aos jogadores do próprio time, algo bem diferente do que ocorre nas
arquibancadas do Brasil. Já fiz essa mesma observação em texto sobre a partida que
assisti no Gran Parque Central, do Nacional, o que significa que é provável que
esse tipo de atitude faça parte da cultura torcedora uruguaia.
Mas ao que parece essa tendência de se ofender os jogadores dos
times para os quais se torce é mais uma exceção do que uma regra no hábito torcedor de diversos países, uma exceção da qual o Brasil faz parte. No texto
“Por que xingamos nossos jogadores?”, publicado no Ludopédio, o Professor
Marcos Alvito mostra que Argentinos e Ingleses, por exemplo, insultam seus
adversários, o árbitro, mas dificilmente os atletas dos times de coração
No caso dos manyas, o alvo principal das ofensas são os
torcedores do Nacional. Aliás, Peñarol e Nacional mais parecem Isaú e Jacó, os irmãos que se odiavam e tudo disputavam no romance homônimo de Machado de Assis. O excesso de proximidade e familiaridade costuma gerar fortes ânsias de diferenciação, vemos isso com Vasco e Flamengo, Palmeira e Corinthians e, sobretudo, Grêmio e Internacional, no Brasill. Para usar uma ideia de Freud, talvez fosse possível dizer que existe uma espécie de "narcismo das pequenas diferenças" que alimenta certas rivalidades ferozes, notáveis entre torcidas imediatamente vizinhas.
O fato é que os torcedores do Peñarol e Nacional disputam cada pedaço da história do futebol uruguaio e até mesmo mundial. E creio que assim seguirão para o resto de suas vidas.
E o jogo?
Cada vez é mais difícil me concentrar no jogo em campo. Observar a cultura torcedora ao meu redor e experimentar os estádios que visito tem se tornado prioridade da Caravana. Sei que o jogo em si é a razão de ser de tudo isso, mas não tenho muita competência para comentá-los e não faltam pessoas que façam isso.
Quando vou torcer para o meu time, não tiro os olhos do gramado. Mas com a Caravana me liberto dessa obsessão e abro caminho para outras.
A partida entre Plaza Colonia e Penãrol terminou em 1 a 1. O empate é resultado que dificilmente os torcedores festejam, sobretudo, se seu time começa ganhando. Porém, esse placar mantinha o Carbonero na liderança do Apertura que acabou sendo conquistado por ele mesmo.
Findado o jogo, restou um breve ritual de despedida em que os sinalizadores, cujo uso é proibido, iluminou a noite naquele pedaço do Centenário.
Estava na hora de ir embora.
É provável - bem provável, mesmo - que da próxima vez que a Caravana vá a Montevidéu, o Peñarol já tenha inaugurado seu novo estádio cuja construção se transformou em um evento que pode ser acompanhado no site do clube.
Espero que esse novo palco de jogos receba o público, respeitando a diversidade dos modos de torcer e que não seja guiado por uma índole excludente como ocorre em diversas arenas do Brasil e do mundo afora.
E o Centenário?
Ele foi minha obsessão uruguaia, capaz de me deixar deslumbrada com ou sem torcida. Sentirei saudades imensas de um estádio em que cabe a imensidão.
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