domingo, 22 de novembro de 2015

"Fui Flamengo até 1977": Portuguesa X Volta Redonda e a cultura torcedora underground


Seu José Reis, segundo da direita para a esquerda. Ao meu lado e com chapéu está Henrique que, gentilmente, me presenteou com a bandeira do Volta Redonda

A frase que dá título a esta postagem foi dita pelo Sr. José dos Reis, um dos torcedores do Volta Redonda que enfrentou uma longa viagem até a Ilha do Governador, para assistir a semifinal da Copa Rio.

Trata-se de uma frase que é potencial promotora de polêmica porque pressupõe algo que muitos torcedores considerariam como uma atitude grave e digna das mais ríspidas reprovações: trocar de time ou, virar a casaca, como se diz no linguajar popular.

Os chamados vira-casaca costumam ser uma figura sobre a qual recai uma série de recriminações e todo um imaginário negativo, já que representaria algo próximo a um traidor.

Houve época em que eu também pensava assim, mas certas radicalidades estão cada vez mais perdendo forças diante da complexidade da vida e do próprio futebol.

Obviamente que não me tornei tão liberal de modo a ser favorável a trocas constantes de times, mas consigo reconhecer a possibilidade desse fenômeno acontecer em algum momento da vida de alguém. E diversos podem ser os motivos para isso ocorrer.

Por ser fortemente anexado à paixão, sentimento compreendido como nascido das profundezas do indivíduo, torcer por um time foi alçado a uma condição existencial e, portanto, pensada como imutável. Mas essa percepção é, em grande medida, fundada no senso comum, o que muitas vezes pode ser perigoso já que parcial, pois deixa de lado os vários elementos que atuam no processo de adesão a um clube de futebol. Elementos que não se limitam a escolhas movidas à pura espontaneidade.

Na tese Do dom à profissão o pesquisador Arlei Sander Damo já demonstrou as diversas tramas de sentidos que  sustentam o emaranhado das relações que mantemos com os times pelos quais torcemos.

Isso sem mencionar que, recentemente, muitos estudos têm lançado luz sobre a questão da paixão, tentando desnaturalizar a ideia de que trata-se de um sentimento universal, acabado e, independente, das demandas culturais de diferentes épocas e lugares. Autores como Davi Le Breton, assim como toda vertente da Antropologia das emoções têm chamado a atenção para o fato de que o sentimento, paixão, é também "uma atividade de conhecimento, uma construção social e cultural, a qual se torna um fato pessoal mediante o estilo particular do indivíduo" (LE BRETON, David. As paixões ordinárias. Antropologia das emoções. RJ: Vozes, p.12)



Parafraseando Simone de Beauvoir, talvez seja correto dizer que não se nasce torcedor, mas torna-se torcedor de um clube, e essa frase pode ser dita até mesmo para quem diz torcer para determinado clube, desde quando estava na barriga da mãe.

Seu José Reis tornou-se torcedor do Volta Redonda, em 1977, deixando de lado seu passado de rubro-negro para  vestir o amarelo e o preto que são as cores do Voltaço.

Ele também podia vestir a camisa da Caravana - no dia em que ela tiver uma - porque sua história representa o espírito Caravana de ser. Espírito um tanto underground, poderíamos  assim dizer, afinal seu José mostra que existem diversos modos de se relacionar com o futebol, diversos sentidos do torcer, alguns dos quais incompreendidos já que à margem do mainstream

.
Torcer por um time é uma questão que sempre me despertou fascínio e, nos últimos tempos, seja por conta da Caravana, seja por causa dos meus interesses de pesquisadora, esse fascínio só faz aumentar.

No discurso da grande imprensa, na fala cotidiana, nos habituamos a ouvir certas considerações acerca da natureza do torcer que costumam ressaltar seu caráter puramente espontâneo e irracional.



É certo que essas características  conferem à torcida uma dimensão romântica sendo até capazes de nos revestir com uma dimensão que poderíamos chamá-la de aurática, no sentido usado por Walter Benjamin para fazer referência às obras de arte e seu caráter único.



Gosto dessas representações e interpretações que se costumam fazer dos torcedores e torcedoras, apenas sou temerosa quanto aos riscos de cairmos em extremismos e simplificações.  Porque a beleza do torcer - assim como diversos fenômenos sociais - está na sua complexidade.



Aparentemente não faz sentido algum trocar de clube e menos sentido faz, caso esse clube seja nacionalmente conhecido, dono de vários títulos nacionais e internacionais, como é o caso do Flamengo.



Esse estranhamento se justifica porque, no Brasil, a cultura torcedora hegemônica costuma valorizar currículos vitoriosos, o que provavelmente explique o profundo horror aos vice-campeonatos, como demonstrado na Copa de 1950. Essa valorização também se manifesta na aversão às derrotas da seleção brasileira masculina que costumam provocar uma espécie de caça aos possíveis culpados do insucesso da Canarinho em campo.



Mas há vida - e muita vida - para além dos holofotes midiáticos e para além dos brilhos das taças, embora obviamente o desejo da vitória seja parte importante dos torcedores e do próprio futebol.



Faz parte, mas não significa que seja elemento preponderante porque se o fosse dificilmente poderíamos conceber casos como o do seu José dos Reis que deixou de torcer para o Flamengo do Rio de Janeiro para aderir ao Volta Redonda. 



A partir de uma conversa, meio que incidental, encontrei fonte de dialogo para uma série de questões que têm girado na minha cabeça.




FUI FLAMENGO ATÉ 1977

Essa frase me chamou atenção não somente por causa da troca de clube, mas, também, porque essa mudança tem data: 1977.

Na momento da conversa, não me veio à cabeça perguntar o porquê desse marco temporal. Por isso, não sei dizer, com toda certeza, os motivos que justificam seu José ter passado a torcer pelo Volta Redonda, em 1977.

Mas posso afirmar que essa adesão clubística seria impossível antes de 1976, simplesmente porque antes desa época, não existia o Volta Redonda Futebol Clube  que foi fundado exatamente naquele ano, mais especificamente no dia 9 de fevereiro.

Sua fundação se relaciona a necessidade de a cidade de Volta Redonda possuir um representante no Campeonato Carioca, após a fusão do Rio de Janeiro com o Estado da Guanabara e o surgimento da Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro.

Mas, então, antes dessa época, não havia clubes de futebol em Volta Redonda?

Este blog já falou um pouco sobre o Raulino de Oliveira, estádio de Volta Redonda, inaugurado em 1951, mas não comentou que durante um bom tempo essa praça esportiva foi administrada pelo Guarani Esporte Clube cuja sede era localizada no mesmo endereço. O clube foi fundado em 1946, participou de diversas competições municipais e, em 1975, encerrou suas atividades.

Não foi fácil encontrar informações sobre o Guarani, mas novamente um dos sites que mais recorro em busca de informações e relíquias memorialísticas sobre futebol, me salvou novamente:


Fonte: http://cacellain.com.br/blog/?p=22530



Também podemos mencionar o Clube de Regatas Flamengo de Volta Redonda cuja fundação data de 1971. Embora ainda exista, não se encontra com as devidas condições de manter um time, sofrendo com muitos problemas estruturais em sua sede:


Fonte: http://cacellain.com.br/blog/?p=38713

Mas na década de 1970, o Flamengo era o único clube profissional em atividade e num primeiro momento era o principal candidato para competir o Carioca. As reuniões entre dirigentes encaminhavam a participação para essa solução, mas mudanças de rumo, ainda não muito claras, levaram à criação de um novo clube, o Volta Redonda cujo uniforme ostentaria as cores da cidade.

Nesse mesmo ano, o Volta Redonda teve sua primeira participação no Campeonato Carioca, totalizando 21 jogos. com 5 vitórias, 7 empates e 9 derrotas (ASSAF, Roberto; MARTINS, Clovis. História dos campeonatos Cariocas de futebol  - 1906/2010. RJ: Maquinária, 2010, p. 441-442).

No ano seguinte, o Volta Redonda já tinha um novo torcedor: seu José dos Reis.

Acabei de demonstrar - aproveitando para falar um pouco de história - o motivo mais elementar que  explica o marco temporal da mudança de time de José. Certamente, pode haver outros motivos e, somente, uma outra conversa poderia esclarecê-los. 

Mas voltando ao breve bate-papo no estádio, seu José continuou a falar sobre sua mudança clubística. Ele disse que que não fazia sentido continuar torcendo por um clube tão distante, como o Flamengo, enquanto tinha um clube bem perto dele, que lhe era familiar, acessível e que representava a sua cidade. E esse era o caso do Volta Redonda.

A representatividade local é aspecto relevante no futebol e, nos últimos tempos, têm sido servido de argumento que contestam os rumos que o futebol tem tomado, sobretudo, por conta da influência dos fluxos mercadológicos atuais.

José, portanto, tocou numa das questões mais polêmicas despertadas pelo futebol nos últimos 20 anos. Clubes como Manchester City, Real Madri entre outros foram gradativamente atendendo as demandas da globalização e do dinheiro. Além de clubes podemos pensá-los também como marcas, ícones mundialmente compartilhados.

Pode-se torcer a milhares de quilômetros de distância, o que em parte é uma possibilidade já aberta pelo rádio, mas extremamente intensificada com o advento da televisão e das transmissões via satélite. Porém, movimentos como a Associação de torcedores Independentes, surgida na Inglaterra, demonstram sérias preocupações quanto à crescente desvalorização das relações entre os clubes e os torcedores locais, já que, atualmente, se priorizaria  a conquista de mais público - e, por sua vez, mercado consumidor - ao redor do mundo.

Para muitos torcedores, o vínculo local é considerado como elemento fundamental para o futebol. E no Brasil temos exemplo desse tipo de preocupação, visível, por exemplo, ao longo da disputa da Copa do Nordeste, quando as arquibancadas encontram-se manifestações que reivindicam a valorização dos clubes locais (há um bom artigo sobre esse aspecto na Revista Esporte Sociedade)

Esse preocupação tão atual e discutida em diversos níveis, aparece de modo claro na fala de seu José.

E também aparece na fala de alguns de seus colegas ali presentes no estádio, com quem também conversei rapidamente. Todos já torceram por algum time carioca, sobretudo, Vasco e Fluminense, mas passaram a torcer para o Volta Redonda, time da cidade onde moram, acompanhando o time em no seu dia a dia e nos diversos recantos do Rio e do país.

José Reis é o primeiro da direita para a esquerda



Como disse José, "o Flamengo está muito longe", distância que certamente inviabilizaria um tipo de experiência com o futebol que é fundamental para muitas pessoas.

A história de seu José Reis é absolutamente fascinante. Nela temos um indivíduo que torcia para o Flamengo, o clube mais popular do país, já na década de 1970, mas que resolve torcer para um clube recém-fundado, como era o caso do Volta Redonda.

A pouca conquista de títulos, a participação em competições de pouca visibilidade midiática, poderiam ser motivo para José voltar a torcer para o Flamengo. Mas passado tanto tempo, sua relação com o time do sul fluminense continua firme e forte.

Na minha opinião, a importância dada à representatividade local também se relaciona a uma forma específica de fruir o futebol, forma essa que pressupõe proximidade territorial, frequência aos estádio e maior possibilidade de contato com jogadores e dirigentes, ou seja, maior participação no cotidiano do clube. Algumas dessas possibilidades, geralmente, costumam ampliadas por clubes não somente locais, mas de pequeno investimento.

Há outras questões absolutamente  relevantes de serem pensadas e que são despertadas  pela cultura torcedora presente nos estádios frequentados pela Caravana.   

Trata-se de uma cultura torcedora que poderíamos chamá-la de underground composta por indivíduos que seguem clubes fora do circuito midiático do futebol brasileiro



 DE PORTUGAL PARA A ILHA DO GOVERNADOR


O importância conferida à dimensão local não deve excluir a possibilidade de diálogo com e intercâmbio com elementos que poderíamos chamar de globais. Atitude assim seria uma espécie de contrassenso à própria história do futebol, no Brasil, já que se trata de atividade que chegou a nós vinda da Inglaterra.

Aliás diversas torcidas são vinculadas a colônia de imigrantes como é o caso do Palmeiras, Vasco da Gama e da Portuguesa da Ilha. Por isso, a torcida canta

De Portugal

Pra Ilha do Governador!

Sou Portuguesa Carioca, sou da Lusa sim senhor!


Mas os cânticos da torcida Brava Raça Lusitana exaltam, também, o pertencimento local, referente ao bairro, Ilha do Governador:

Com muito orgulho, sou morador da ilha, torço pra Portuguesa
Clube de tradição!







E essas músicas foram cantadas novamente, no sábado passado, dia em que a Portuguesa enfrentou o Volta Redonda pela Semi-final da Copa Rio. 




Do lado direito da Brava Raça, estava o torcida Jovem Lusa










No canto esquerdo da arquibancada, os torcedores do Volta Redonda:






Nas arquibancadas estava o ex-técnico, Jair Pereira, recentemente contratado como Coordenador técnico da Portuguesa.
  




 Final de jogo:
















VAI TER ARENA?

A Caravana já havia falado nos planos da Portuguesa de reforma do estádio e construção de uma arena. Ao que parece esses planos continuam vivos, fortes e com possibilidade de concretização, afinal, em 2016, são grandes as chances do estádio ser usado por Flamengo e Fluminense, porque os estádios Maracanã e Engenhão podem fechar para reformas visando as Olimpíadas.


Na entrada do clube os planos para a Arena estão expostos em um grande painel





Fotos minhas 


Tenho grande curiosidade em saber como alguns torcedores recebem essas propostas que seguem o caminho da modernização e do futebol contra o qual muitos deles se colocam. 


Acho que não faltará oportunidade para saber as respostas para essa dúvida, afinal, ano que vem, continuarei a frequentar o Luso esperando que nele a Portuguesa possa jogar partidas em competição nacional, já que o clube garantiu esse direito ao ir para a final da Copa Rio.

Depois desse primeiro jogo, a Portuguesa foi a Volta Redonda e conseguiu classificar-se para a decisão da Copa Rio e, enquanto, termino esta postagem, o time se prepara para enfrentar o Resende.

Boa sorte a todos,


e até breve


sábado, 31 de outubro de 2015

Não é mole não! o feminino é o orgulho da nação. Flamengo/Marinha x Barcelona, Estadual Feminino



Terça-feira, dia 20 de outubro de 2015, novamente pisei o gramado do estádio de Moça Bonita e, nele, pensei comigo mesma: há alegrias que só mesmo o futebol é capaz de nos dar. 

Eu já havia entrado no campo do Bangu, mas de maneira um tanto sorrateira e sem tempo suficiente para deitar, olhar para o céu, olhar ao meu redor e tirar a foto que abre essa postagem quase como uma epígrafe que diz: "Um grande passo para uma mulher e um salto inútil para a humanidade". 

Porém, se cada biografia individual fosse cheia de momentos como esse, não necessariamente promovidos pelo futebol, creio que a humanidade agradeceria. 

Mas o que eu estava fazendo em Bangu, em plena tarde de um dia de semana?

Fui assistir a final do Campeonato Estadual de Futebol Feminino, afinal neste ano ainda não havia presenciado uma partida das meninas. Na verdade era para esse post ser sobre algum jogo do Flamengo/Marinha no campeonato Brasileiro de futebol feminino. No entanto, uma série de contratempos não me permitiu esse encontro que somente se tornou viável, justamente, na partida que decidiu quem seria o time que ficaria com o título de campeã do Carioca.

Debaixo de um sol impiedoso, em Bangu, uma taça de campeonato foi disputada e sua conquista bastante comemorada ao final da partida. Na arquibancada havia cerca de 150 pessoas e como no futebol feminino o mundo é meio às avessas, a maioria dessas pessoas torcia para o Barcelona e não para o Flamengo.

Na verdade, aquele estádio quase vazio, pouco fazia lembrar a atmosfera das finais de campeonato de futebol no Brasil, sobretudo, se considerarmos que não foi cobrado ingresso e que bastava chegar e entrar no estádio para assistir ao jogo.




Mas acontece que se tratava de uma final de campeonato de futebol feminino e esse é um detalhe importante que pode oferecer algumas pistas para explicar – mas, não justificar – possíveis motivos que nos façam compreender os porquês de no estádio de Moça Bonita, o clube mais popular do país tenha sido campeão carioca sem causar burburinho quase nenhum.



Futebol feminino praticado, mas pouco falado 


Os jogos dos campeonatos de futebol masculino têm suas tabelas acessíveis em diversas fontes que incluem os principais veículos de comunicação, sites dos clubes, sites de torcidas e diversas outras formas a partir das quais é possível obtermos o mínimo de informação.


Porém, caso desejemos saber sobre algum jogo de um campeonato de futebol feminino, ficaremos limitados ao site da CBF, da Federação local ou a algum site de clube, caso ele possua essa ferramenta.  

A dificuldade de acesso à informação e o raro interesse da imprensa pelos jogos de futebol feminino geram consequências importantes, entre as quais, a falta de promoção das partidas, quesito relevante, por exemplo, para a captação de público.  

Às vezes parece ser necessário ter uma bola de cristal para sabermos informações sobre o futebol feminino. 

Antes de ir para Moça Bonita, comprei o mais importante jornal esportivo do Rio de Janeiro em busca de notícias sobre o jogo que decidiria o Carioca Feminino de 2015. Encontrei uma breve menção, no canto de página que trata da cobertura da semana do clube da Gávea.

Jornal Lance!, 20/10/2015, pág, 23. Arquivo pessoal

Em outras palavras, se joga futebol feminino, no Brasil, mas pouco se fala dele. Em um contexto miditiatizado, esse silenciamento é um dos fatores que prejudica, em demasia, o presente e o futuro da modalidade. Certamente que não há como responsabilizar somente a imprensa por esse problema, afinal também cabem aos clubes e federações a elaboração de estratégias de marketing que contribuam para dar mais visibilidade ao futebol feminino.


O fenômeno da “falação esportiva”, como mostrado – e criticado –  por Umberto Eco em relação aos esportes, não é observável no caso do futebol feminino, no Brasil, modalidade que é sim praticada – às duras penas – e pouquíssimo falada. Em nosso país, o futebol feminino está longe de poder ser considerado como vinculado à matriz espetacularizada, categoria explicitada por Arlei Sander Damo. Há nessa prática esportiva uma série de problemas típicos dos futebóis que estão fora – ou inseridos de modo parcial - do circuito privilegiado do futebol brasileiro.

A discutibilidade que tanto marca o futebol masculino, como mostrado por Christian Bromberger, é fenômeno quase que inexistente na sua versão feminina. As conversas sobre os jogos se reduzem aos momentos de transmissão em que se pode ouvir as opiniões dos especialistas. Porém, poucos são os jogos transmitidos. Outra possibilidade são os comentários que surgem nas arquibancadas, também, no momento do jogo, comentários, aliás, marcados pelo sexismo, deboche e pouquíssimo interesse pela partida em si. Não há mesa-redonda sobre futebol feminino ou que pelo menos a ele faça referências dignas de nota.


Se os comentários e discussões acerca dos jogos não ultrapassam o tempo de sua realização, e não são multiplicados pela imprensa esportiva, significa que muitas partidas do futebol feminino correm o sério risco de ficarem reduzidas aos 90 minutos do gramado, tendo, desse modo, seu poder de repercussão limitado e, consequentemente, vendo-se perder sua possibilidade de inserção no cotidiano, na memória e no imaginário individual e coletivo.


Visibilidade, aliás, é justamente o que procuram diversas jogadoras de futebol. Conversando pessoalmente com duas delas, cujos nomes prefiro omitir, ouvi o quanto é importante chegar às decisões dos campeonatos. Na opinião dessas jogadoras, o fato de o Flamengo/Marinha, não ter ido às fases finais do Campeonato Brasileiro e da Copa do Brasil tirou a oportunidade de o trabalho das atletas em campo ser visto, principalmente por gente ligada à seleção brasileira. Além desse aspecto, ganhar títulos é fator fundamental para a manutenção dos times femininos. Resultados ruins podem fazer com que grupos sejam desfeitos do dia para a noite ou gerar dificuldade na captação de recursos para seu sustento mínimo.


No Brasil, em julho, o Senado aprovou a MP do futebol, uma medida provisória referente à possibilidade de refinanciamento de dívidas dos clubes de futebol com o governo Federal. Como contrapartida ao refinanciamento, seria exigido dos clubes, entre outras coisas, o uso de 20% do seu faturamento em investimento em outras práticas esportivas, entre as quais o futebol feminino.

Essa medida pode gerar consequências positivas à modalidade, desde que de fato seja conduzida com seriedade. Por isso a lei por si só não basta, sendo necessária a devida fiscalização, caso contrário de nada adiantará sua simples existência.

É fundamental um maior compromisso dos clubes de futebol com a modalidade feminina. No caso do Flamengo, por exemplo, o time campeão carioca foi montado e é sustentado pela Marinha do Brasil, para participar de competições militares como foi o caso dos Jogos Mundiais Militares realizados recentemente na Coreia. 

O Flamengo somente cedeu sua “marca”, por isso as meninas entram em campo com o uniforme que ostenta o escudo do clube da Gávea ao lado do símbolo da Marinha.


Fonte: http://www.flamengo.com.br/site/noticia/subcategoria/111

Ambas as instituições, de algum modo, ganham com o acordo. O time da Marinha sem a parceria com um clube civil não poderia participar de competições como o Carioca, Campeonato Brasileiro e Copa do Brasil. E o Flamengo, por sua vez, pode ostentar sua marca em competições nacionais e internacionais. Cabe lembrar que esse tipo de parceria não é inédito, no Rio de Janeiro, tendo ocorrido em 2010, entre Marinha e Vasco da Gama.

Acredito que esse não seja o melhor meio de se manter o futebol feminino. O ideal seria que os clubes do Rio – e do país – tivessem seus projetos próprios e investissem na formação de jogadoras e na manutenção de times que atuassem com frequência, gerando assim uma estrutura de organização mais estável para a modalidade.


Flamengo/Marinha x Barcelona, final do Carioca Feminino de 2015


No caminho para Bangu nada fazia parecer que eu estava indo assistir a uma decisão de campeonato de futebol e que nela estaria em campo o time mais popular do país. Somente quando cheguei à praça Guilherme Silveira comecei a avistar parte das cerca de 150 pessoas que foram ao jogo.

Não houve venda de ingressos, podendo-se entrar no estádio enquanto nele houvesse espaço. O público presente era basicamente composto por parentes, colegas, curiosos, por alguns meninos das categorias de base do Bangu, enfim um público com interesses diversos, muitos dos quais sem vínculo de pertencimento clubístico com os times em campo.




O horário e dia do jogo também não eram nada atrativos, impossibilitando, por exemplo, a presença daqueles que trabalham em horário comercial. O sol forte, em Bangu, em pleno horário de verão, também não era convidativo. E se ficar parada na arquibancada já era difícil, imaginem correr durante 90 minutos.   É válido lembrar que o horário das 11h, do campeonato brasileiro masculino da série A, foi extinto pela CBF devido às diversas reclamações de jogadores e imprensa, por causa do calor.


Pouco antes da 16h entravam em campo os times e o trio de árbitras formado por Simone Xavier de Paula e Silva (FIFA), Lilian da silva Fernandes e Patrícia Silveira (ambas da FERJ)



Estar fora do circuito futebolístico principal – o que inclui as séries inferiores dos campeonatos locais e nacionais - tem seus problemas, entre os quais, a falta de planejamento e cuidado com atletas e público. Isso sem mencionar, alguns episódios esdrúxulos que acontecem.

O Barcelona, adversário do Flamengo/Marinha, já protagonizou um jogo cercado de inusitados problemas como, por exemplo, a presença de indivíduos consumindo drogas no campo e um enfermeiro fazendo-se passar por médico, fatos que constam na súmula do jogo (www.fferj.com.br). 

Bizarrices como essas dão mostras do baixo nível de organização da competição.


O time de Curicica até já havia vencido o Flamengo, mas foi por WO já que a equipe rubro-negra considerou o gramado do Estádio João Francisco, em Bangu, inapropriado para se jogar futebol. O gramado estava encharcado devido às chuvas do dia anterior, no Rio de Janeiro, e Flamengo/Marinha recusou-se a jogar:
Gramado do Estádio João Francisco, em Bangu. Fonte:http://extra.globo.com/esporte/flamengo-nao-vai-campo-por-causa-de-condicoes-do-gramado-pode-perder-por-wo-no-estadual-feminino-de-futebol-17500874.html

Voltando ao jogo final do Campeonato Carioca, é preciso dizer que havia consideráveis diferenças entre as duas equipes que estavam em campo. O Flamengo tinha o melhor ataque da competição, com 59 gols, enquanto o Barcelona apenas 12. Talvez isso seja reflexo da diferença de estrutura entre os times. 


As meninas que representavam o Flamengo/Marinha recebem salário pago pela Marinha do Brasil, instituição com a qual mantém contrato de oito anos. As jogadoras do Barcelona ganham somente uma pequena ajuda de custo para o transporte. 


O Barcelona é um clube novo fundado em 1999 e seu nome é uma homenagem ao clube catalão, o que se faz notar no escudo do time da zona oeste carioca

Fonte: http://www.fferj.com.br/ClubesLigas/ViewTeam?alias=139

O mascote do clube é um cachorro. Fonte: Fonte: http://www.fferj.com.br/ClubesLigas/ViewTeam?alias=139


O time feminino é treinado por Mariza Pirez, o que é uma iniciativa que precisa ser ressaltada já que é importante para o fortalecimento da presença feminina no futebol, ocupando funções de comando:


Mariza Pires é ex-jogadora de futebol, atuando pela Seleção Feminina na década de 1990.

O time do Barcelona lutou bastante, contra o sol e contra as diferenças existentes na estrutura dos dois times, mas ao final o troféu ficou com o Flamengo/Marinha. 

Segundo gol do Flamengo, Pamela, camisa 9

Nem sempre dá para o futebol ser uma caixinha de surpresa.







A goleira Luana segura a taça de Campeã


Ôooooo, vai pra cima DELAS Mengo!

No ótimo trabalho Eu canto, eu bebo e brigo... Alegria do meu coração: currículo de masculinidades nos estádios de futebolmeu colega e pesquisador Gustavo Bandeira, demonstra que há nas arquibancadas de futebol um currículo de masculinidades,  ou seja, que nelas "sujeitos são ensinados por diferentes ações, formas de pertencimento clubístico e também modos adequados de ser masculino nos estádios de futebol".

Por adequado, nesse caso, entende-se  um conjunto de atitudes não somente homofóbicas, mas pautadas no preconceito contra as mulheres. 
 Particularmente, tenho a impressão de que quando há mulheres atuando em campo, a necessidade de afirmação de machezas ganha estratégias mais perversas. Quando uma mulher está em campo, os comentários sexistas são constantes, alguns vindos até mesmo de outras mulheres. 

Pouco se fala do jogo, do desempenho das jogadoras ou árbitras seja para elogiar ou reclamar. Mas, sobram comentários de extremo mau gosto, saídos da boca de gente que pouco se importa com os ouvidos alheios e que pouco se importa com a dimensão das frases que proferem. Frases que aliás me recuso a reproduzir.

Faz-se análises maliciosas do corpo das jogadoras, enfocando-se detalhes considerados feios, ridículos ou exaltando-se traços que despertem desejos que são verbalmente explicitados do modo mais sórdido possível.

Às vezes impressiona a naturalidade com que tudo isso é dito.

Mas nem todos são assim, há pessoas que torcem e até se isolam para se concentrar mais no jogo:











Pude encontrar abrigo das demonstrações de macheza agressivas e exaltadas, justamente onde poucos esperariam: perto de uma torcida organizada. Quase sempre relacionada à violência, a comportamentos considerados nocivos ao futebol, poucos imaginariam que dela algo de positivo pudesse ser esperado, ainda mais sabendo que grande parte de seus cânticos de ofensa ao adversário se fundamentam na feminização do outro, sendo, portanto, de fundo machista e preconceituoso.

A organizada presente em Moça Bonita era a Flamanguaça que estava representada por um pequeno grupo animado de pessoas que incentivaram do início ao fim às jogadoras do Flamengo. Suas faixas foram colocadas no alambrado, ritual comum das torcidas em todos os jogos.









Eles cantaram o hino do clube, assim como algumas conhecidas músicas que costumam ser entoadas nas arquibancadas dos jogos do time masculino. Algumas vezes, adaptações foram necessárias, e bem-vindas, como no caso do “ôooooo, vai pra cima DELAS Mengo”. Ao final do jogo, cada nome de jogadora foi gritado por esses torcedores, em especial, a de Pâmela, autora dos dois gols do Flamengo: “Olê, olé, olé, olá Pâmela, Pâmela”

No decorrer da partida, o pessoal da Flamanguaça apoiou o time e exaltou a conquista das meninas ressaltando o fato de que foi pelo futebol feminino que tanto o clube quanto seus torcedores puderam sentir o gosto de uma conquista no ano de 2015. Esse reconhecimento ficou explícito no grito: “Não é mole não, o feminino é o orgulho da nação”. 



Para comemorar a conquista, muitos torcedores conseguiram entrar em campo e tirar foto com as jogadoras. 



Caso os principais clubes do país possuíssem um time feminino, essa modalidade poderia ganhar bastante fôlego, afinal a grande maioria dos times que jogam o campeonato feminino não possui vínculo algum com clubes já tradicionais do país. São, portanto, desconhecidos do grande público, fator que provavelmente interfere de modo negativo na promoção da competição, assim como dificulta a captação de público torcedor.

Não sei dizer a média de público do campeonato estadual feminino, pois no site da FERJ, consta apenas a súmula dos jogos, sem o indicativo do borderô. É possível que isso ocorra devido a não cobrança de ingressos. No caso do Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino, o Boletim Financeiro dos jogos está indisponível até o momento. Porém, pelas imagens que podem ser vistas na TV, os jogos costumam ter pouquíssima presença de torcedores.

A torcida é parte fundamental do futebol, sendo, portanto, necessário buscar estratégias que visem incentivar a frequência aos jogos das meninas. Para isso, seria importante melhorar a organização dessa modalidade no Brasil e, nesse caso, a participação dos clubes, sobretudo os tradicionais, se mostra fundamental. Podemos usar como exemplo, o caso do time basquete do Flamengo que sempre leva excelentes públicos aos ginásios onde joga, principalmente, se for decisão.

Certamente que este não é o único caminho e nem mesmo podemos afirmar ser o melhor. Apenas pode-se dizer que o futebol feminino precisa de mais esforços para que se torne uma modalidade capaz de manter-se financeiramente e oferecer condições de atuação às jogadoras, o que inclui sua plena profissionalização. Melhores condições, também significa horários menos ingratos, mais acesso à informação e estádios mais acessíveis ao público e nos quais se possam realizar jogos à noite.  

Que o futebol feminino não seja apenas praticado, mas falado pelos cantos do país, contando com a participação dos meios de comunicação nesse processo de “falação esportiva”, que no momento seria importante para as meninas da bola.

O futebol feminino também precisa ser cantado nas arquibancadas, como o fez a Flamanguaça em Moça Bonita.


Finalmente, fica a curiosidade em saber o que aconteceria caso o futebol feminino se popularizasse, sobretudo, por conta da sua adoção pelos principais clubes do país. Como ficariam os cânticos, que tipo de mudanças poderiam ser percebidas na cultura torcedora a partir desse novo fenômeno? Que tipo de público seria construído em torno dessa modalidade?

Espero que essas perguntas ganhem respostas em breve e tenho a impressão de que isso só tem a enriquecer a cultura futebolística e torcedora do país.


Voltando para casa

Aproveitei o que pude dos minutos que fiquei no campo de Moça Bonita: 




Até que não teve jeito e precisei voltar para o aconchego de casa. 


Antes de embarcar no trem, me deparei com esse termômetro de rua indicava o calor que fazia em Bangu.  Devia ser uma 18h30... então pensei: imagina quantos graus fizeram no horário do jogo?



Dei tchau para Bangu



E fiquei aguardando o próximo trem debaixo de um belo entardecer




Até a próxima....