Fiz o vídeo no calor da emoção que senti não apenas por ter visto um jogo, mas por ter pisado no gramado do Estádio Conde Rodolfo Crespi.
O estádio é um patrimônio do futebol brasileiro, que sobrevive em meio às arenas, que resiste ao cenário futebolístico nacional, assim como à expansão mobiliária louca por terrenos como os do Juventus da Mooca.
Em campo estavam duas equipes que juntas somam 192 anos de história. A Internacional de Limeira com seus 101 anos e o Juventus que completa hoje, dia 20 de abril, 91 anos.
Fiquei meio gaga no vídeo, meio sem saber o que dizer, mas agora vou escrever um pouca da história do Juventus e da visita ao estádio.
O Moleque Travesso e sua história
Há alguns livros e documentários sobre o Juventus que podem nos dar informações valiosas sobre sua história. Em minha biblioteca tenho o livro Glórias de um moleque travesso, publicado em 2002 pelos autores Angelo Eduardo Agarelli e Vicente Romano Netto(filhos de fundadores do Juventus) e Fernando Razzo Galuppo, jornalista apaixonado polo clube.
Esse livro me serviu de base para minhas pesquisas iniciais, continuadas em outras fontes que aqui cito.
Bem, vamos lá...
Assim como o Bangu e tantos outros times no Brasil, o Juventus tem sua origem relacionada às fábricas diversas que se implantavam no Brasil, no final do século XIX e início do XX. Fábricas em geral de origem estrangeira - sobretudo inglesa - e que formavam times de futebol como um modo de lazer dos operários.
No caso do Juventus da Mooca, sua história está vinculada à imigração italiana que também caracteriza bairros como a Barra Funda como foi mostrado no post anterior.
Enquanto o Nacional da Barra Funda é de origem ferroviária, o Juventus começa a germinar na tecelagem Regole e Crespi & Cia, fundada em 1897, e rebatizada como Cotonifício Rodolfo Crespi em 1909.
Na fábrica Crespi chegaram a se formar alguns times de operários, que duraram pouco até a fundação do Cotonífero Rodolfo Crespi Futebol Clube que tem o dia 20 de abril de 1924 como a data oficial de seu nascimento.
Fonte: http://cacellain.com.br/blog/?p=47391 |
Em 1924, Rodolfo Crespi cede um terreno para que o time de operários possa jogar. Esse terreno se localizava no mesmo endereço da fábrica, Alameda Javry - que hoje é nacionalmente conhecida como Rua Javari.
O Estado de São Paulo, 24/04/1925 (http://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/19250424-16861-nac-0006-999-6-not)
Em 1929, algumas melhorias foram feitas no campo da Javari, como a construção de arquibancadas de madeira:
O Estado de São Paulo, 11/11/1929 (http://acervo.folha.com.br/fdm/1929/11/11/1/ |
Em 1930, o Cotonífero muda de nome passando a chamar-se de Clube Atlético Juventus. Nesse mesmo período surge o apelido Moleque Travesso dado pelo jornalista Thomaz Mazzoni que junto com Mario Filho, ajudou a criar toda uma mitologia - entendida como narrativa - em torno do futebol.
O apelido Moleque Travesso surge após o Juventus vencer o Corinthians, já no primeiro ano em que o time da Mooca participou da elite do futebol paulista.
E o apelido se mantem até hoje
Fonte: http://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/esportes/noticias/?p=193484 |
Em 1941, o estádio da Rua Javari é nomeado de Conde Rodolfo Crespi - em homenagem ao dono do Cotonífero - e assim inaugurado numa tarde festiva
Folha da Manhã, 13/07/1941 (http://acervo.folha.com.br/fdm/1941/07/13/) |
A fábrica fechou as portas e hoje seu espaço é ocupado por um hipermercado, mas o clube e o estádio mantém-se vivos
Visitamos o estádio na manhã de sábado dia 12/04/2015. O jogo Juventus x Internacional de Limeira estava marcado para as 10h e já às 9h podia-se notar que o público seria grande, até mesmo porque o Juventus fazia uma ótima campanha na série A3 do Campeonato Paulista.
A Rua Javari foi sendo tomada por torcedores que chegavam aos montes, alguns ainda em busca de ingresso
Que belo time... que belo esquadrão ...
A família juventina dá as cartas logo na entrada do estádio. Na Javari, quem estiver vestindo outra camisa que não seja o manto grená é convidado a se retirar.
Obviamente que essa placa pode nos soar antipática e vai de encontro ao ideal das torcidas mistas, tão celebradas pela imprensa esportiva. Não importa.
Na verdade, trata-se de um aviso dado com certo humor, mas que não esconde a vontade de manter o Conde Rodolfo Crespi com as arquibancadas tomadas pelo grená.
Acho uma atitude totalmente compreensível e que, embora, não evite que os seus torcedores dividam o coração com os outros clubes, tenta garantir que ali, na Rua Javari, a camisa Juventina seja predominante.
E de fato o efeito é ótimo. As arquibancadas do Crespi são tomadas por indivíduos de grená que juntos cantam o hino do Juventus
Que belo time
Que belo esquadrão
Juventus amigo
Do meu coração
Que belo time
Que belo esquadrão
Juventus amigo
Do meu coração
Juventus, Juventus
Eu estou aqui
Vamos torcer juntos Juventus
E daqui nunca mais sair
Torcida composta por idosos, mulheres, crianças e uma juventude diversificada que às 10 da manhã mostrava-se absolutamente disposta a apoiar um clube que muitos dos quais sequer viu campeão de um torneio principal.
O Juventus e seu poder de arregimentação é tema de diversos documentários como por exemplo, "Rumo a Tóquio" (Dirigido por Andréa Kurachi, Helena Tahira e Rogério Zagallo) que enfoca a vitória do Juventus na Copa São Paulo de 2007 ou "Voltaremos" que conta um pouco da história do clube, reunindo uma série de depoimentos de torcedores, dirigentes e jogadores que relatam sua relação com o clube da Mooca.
De fato a vitória é elemento importante para despertar e alicerçar o pertencimento clubístico dos torcedores.
Experimentar a conquista de um título está no horizonte de expectativas de praticamente todos os aficionados por futebol, mas isso por si só não explica a complexa relação entre nós e os clubes pelos quais torcemos.
E essa explicação se torna menos viável ainda quando nos deparamos com casos como o do Juventus, Santa Cruz, Remo e tantos outros capazes de mobilizar muitas pessoas ao seu redor, mesmo estando na periferia do futebol brasileiro.
No caso da torcida do Juventus nota-se certo orgulho de estar de fora dos holofotes do futebol nacional, o que se evidencia na frase "Ódio ao futebol moderno" estampado em camisas e faixas usadas, sobretudo, por quem frequenta a Setor 2, um agrupamento de torcedores que passa grande parte do jogo nessa parte do estádio que fica atrás do gol, lado esquerdo das sociais.
Esse agrupamento incentiva o time a todo momento, cantando músicas adaptadas daquelas que ouvimos nos estádios argentinos e que também podem ser ouvidas nos brasileiros.
A esses cânticos se somam bandeiras esticadas nas paredes do estádio com frases escritas em italiano, mostrando a forte relação do clube com a imigração italiana.
A Torcida Setor 2 é formada em sua ampla maioria por jovens e em grande medida podemos entendê-la como uma torcida que representa o Juventus e que também representa uma forma de torcer em que o conforto é compreendido como dispensável.
Sendo assim, trata-se de um postura que se contrapõe a tendência - notável sobretudo nas arenas - de privilegiar uma forma de se torcer sentado, com cadeira marcada, em um estádio que mais se aproxima de um teatro.
O lema "Ódio ao futebol moderno" - no caso do Juventus - relaciona-se não somente à transformação do futebol em negócio, como a tentativas de mudanças propostas por dirigentes interessados em "modernizar" o clube, o que incluiria a reforma do estádio, com aumento de capacidade de público, instalação de cadeiras, refletores e diversos outros itens que sigam o modelo das arenas, o que incluiria a venda de naming rights.
Porém parte dos torcedores se mostraram contrários a essa ideia como mostra um breve texto publicado no site Ludopédio sobre a Setor 2:
(...) uma vez que defendem que o estádio define o modo como eles torcem. Mais do que isso, o estádio faz parte da história do clube, e remete as tradições italianas e operárias do clube. Além disso, a construção de um novo estádio acarretaria na elitização das arquibancadas e, portanto, expulsaria boa parte dos atuais torcedores.
A torcida denominada Setor 2 é o principal grupo a levantar a bandeira contra o Futebol Moderno. Esse grupo é contrário aos altos valores de dinheiro que circulam no futebol. Mais do que isso, eles são contra a infiltração de empresários dentro do clube, muitos deles não querem ver o clube na mão de empresários e muito menos que se transforme em uma empresa (Contra o Futebol Moderno – 2 #Clube Atlético Juventus. Victor de Leonardo Figols. Acessível em: http://www.ludopedio.com.br/rc/index.php/arquibancada/artigo/1871)
A Torcida Setor 2 por si só valeria um estudo longo, buscando-se apreendê-la em diálogo com o contexto atual do futebol brasileiro, sobretudo após a Copa do Mundo de 2014.
Chama a atenção a apropriação do termo MODERNO tomado como sinônimo de algo negativo que corromperia o futebol promovendo a elitização desse esporte e exclusão das camadas populares das arquibancadas.
Sem dúvida, existe no cenário futebolístico atual uma tendência altamente mercadorizadora desse esporte, onde os mais ricos ficam mais ricos e os times de menor investimento lutam para sobreviver.
Entretanto é válido tomar certo cuidado com a palavra MODERNO já que ela ao longo dos tempos comportou uma série de significados, servindo de justificativa para uma série de apropriações que se fez do futebol. Apropriações tanto positivas quanto negativas.
Trata-se de uma palavra em que nela cabe tudo, sendo necessária certa cautela.
De qualquer modo, a Setor 2 faz da contrariedade à concepção de moderno um lema que atrai muitos jovens já que é compreendida como uma forma de resistência e defesa a um futebol que se acredita estar desaparecendo.
O tipo de proposta da Setor 2 tem se popularizado e ganhado adeptos em outras torcidas como as do Palmeiras e Vasco e também pode ser pensada como derivada de um contexto em que muitos jovens buscam formas variadas de construção identitária e que estejam fora do circuito mainstream.
No caso de torcidas como a Setor 2 é interessante pensá-las como um espaço alternativo em relação ao cenário espetacularizado, midiático e mercadorizado do futebol atual. Mais do que somente resistir trata-se da necessidade de conciliar determinadas demandas do futebol atual com a tentativa de manutenção de aspectos mais tradicionais do futebol.
Torcer no alambrado é uma das tradições que se procura manter viva :
Esse estilo de torcer, ainda muito presente em estádios antigos, o que o inclui vários dos estádios argentinos que vimos na TV, é passado de geração a geração
Os alambrados nos remetem imediatamente aos antigos estádios e foram - e são - alvo de críticas constantes.
O processo de "modernização" do futebol inglês ocorrido no início da década de 1990 promoveu a remoção dos alambrados de grande parde dos estádios, já que tragédias como as de Hillsborough deram mostras de que essas estruturas metálicas que separam público do campo, ofereciam risco à segurança do público.
Alambrados também lembram acidentes como o de São Januário na final da Copa João Havelange em 2000.
Mas tanto em Hillsborough como em São Januário, o problema maior foi a superlotação dos estádios.
Caso não haja superlotação, não ocorram reações violentas por parte da polícia e caso os alambrados estejam seguros e firmes, não vejo problemas em mantê-los.
Na verdade como já falei aqui, adoro assistir a jogos do alambrado e na Javari escolhi ficar no setor 2 atrás do gol.
É verdade que a visão do jogo não é das melhores e, por isso, não consegui ver os gols do Juventus. Mas tratou-se no meu caso de uma escolha deliberadamente feita por mim.
Como já mencionei diversas vezes aqui, creio na diversidade dos modos de torcer, o que inclui ficar em um lugar onde o jogo não é devidamente acompanhado, mas outros modos de interação com o jogo e com o futebol são possíveis
Como já mencionei diversas vezes aqui, creio na diversidade dos modos de torcer, o que inclui ficar em um lugar onde o jogo não é devidamente acompanhado, mas outros modos de interação com o jogo e com o futebol são possíveis
Outro fator importante que fomenta o sentimento de pertencimento clubístico é o bairro da Mooca. O que se pode perceber é uma forte relação com a Mooca, sendo que o Juventus seria seu maior representante.
Juventus e Mocca teriam sua história imbricada como diz o livro Glorias de um moleque travesso: "Esta camisa grená tem história, que se confunde com a vida de um bairro-nação chamado Mooca" (Introdução)
E o Juventus e a Mooca reiteram: mulher adora futebol, incluindo aquele que passa longe das arenas.
Aos vizinhos privilegiados, uma laje como camarote:
Deslumbrada com a Javari... quase não vi o jogo. O primeiro tempo voou como se fosse segundos.
Quando vi já estava no intervalo.
E no intervalo é hora de enfrentar a longa fila do Cannoli, clássica guloseima do estádio da Javari.
Eu não fiquei na fila, caso contrário eu perderia metade do segundo tempo. Agradeço imensamente a Carol que conseguiu comprar dois Canollis após alguns minutos de espera.
Fim do intervalo, volta para a arquibancada
O jogo terminou 2 a 0 para o Juventus. Um dos gols foi feito pela estrela do time, o jogador Gil que ganhou fama atuando no Corinthians.
Com o fim do jogo, a torcida do Setor 2 foi para as socais, ficando próxima a entrada dos vestiários.
Foi irresistível gravar um vídeo:
Os portões se abriram e pudemos entrar no campo da Javari, onde Pelé teria feito o gol mais bonito de sua carreira.
Ao lado de seu Antonio, ou Sr. Canolli, recuperado do oitavo infarto e de volta a Javari |
Na saída, a pequena multidão se espalha pelos bares atrás de churrasco e cerveja.
E atrás também de esfirras, especialmente as vendidas no Abraozinho que por sinal, patrocina o time. A esfirras de todos os gostos e tipos que saem aos montes do forno.
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