“Thats all I have”
Por Luiz
Guilherme Burlamaqui, ou melhor, Lugui
Sentado num banco de praça em frente à Universidade de Santa Clara, eu esperava
pelo início da partida de futebol entre o San Jose Earthquakes e o Vancouver
Whitecaps. Mastigava um sanduíche frio de peru com presunto, quando um senhor,
não muito idoso, branco, de bigode, relativamente acima do peso, completamente
calvo, se aproximou: “Change, sir?” Antes que eu pudesse dizer não,
completamente embriagado, o senhor sentou-se ao meu lado e começou, com uma
riqueza de detalhes que misturavam a loucura com uma vida fascinante. “Eu
moro ali, logo ali, atrás daquele carro. Sabe? Há dias que eu não tomo banho.
Antigamente, eu podia tomar banho na casa de um amigo meu, todas as terças,
quintas e sábados, mas agora a namorada dele descobriu e não deixa mais eu ir
lá. Senhor (Lord), tudo que eu queria era um banho”. Neste momento, disse a ele
que vinha do Brasil, ele replicou falando que trabalhou no hotel da seleção
brasileira, em 1994, o que é bastante verossímil já que, de fato, a seleção
ficara hospedada ali perto, em Palo Alto. Falei o nome dos jogadores, e disse
que ia ao jogo. Ele retrucou dizendo que “tudo que queria ir ao jogo e que
gostaria muito de me mostrar uma coisa”. Dave, assim ele se chamava, tinha uma
surpresa para mim: embrulhada em jornais velhos, programas de jogo da temporada
passada, fedendo a mofo, era a camisa número 10, que Landon Donovan, jogador
dos Los Angeles Galaxy e capitão da seleção americana, havia vestido em tempos
do San Jose. “Roubei do vestiário, e nunca lavei”, exclamou, misturando orgulho
e vergonha. “Oh, man. Eu só estou te mostrando isso porque é tudo o que
tenho. Eu só tenho isso, e nada mais. Ofereceram-me duzentos dólares pela
camisa, mas eu não aceitei”.
Dentro do
“Buck Shaw Stadium”, o que se vê, no interior da logica do espetáculo é a
participação e o engajamento dos fãs. Numa das tantas promoções que já
descrevi; o locutor perguntou a uma menininha (mais ou menos dos seus oito
anos-doze anos) há quanto tempo ela torcia pelo “Quakes”. “Since foreeever”,
respondeu com um grito estridente. Como aqui, a força dos laços entre
torcedores e clubes é inquebrantável. De toda a forma, a menina podia torcer
pelo clube desde sempre, mas, à saída do estádio, os torcedores um pouco mais
velhos, encontrando seus adversários canadenses, começaram a se perguntar por
que eles ficaram sem futebol por tanto tempo. “O Clash foi para Houston. Foi
isso que aconteceu”. Sem querer estragar as memórias alheias, nada disse, mas,
cá entre nós, o que aconteceu, pura e simplesmente, é que a Liga
Norte-Americana foi à falência nos Estados Unidos, com o país paralisado quase
por uma década sem futebol profissional. É digno de nota, aliás, a dificuldade
dos torcedores em aceitar o resultado de “empate” do jogo. “É tão frustrante o
empate. Deveriam fazer como o Hockey”, disse um, “e jogar um shootout”. (quando
o jogador sai do meio de campo para tentar fazer o gol, se a partida termina em
empate). “Ou podiam fazer como no baseball”, emendou o outro, “e jogar até
alguém marcar primeiro”. À antítese dos rituais descritos por Lévi-Strauss nas
páginas iniciais do “Pensamento Selvagem” em que se joga para celebrar a
equidade entre as metades da tribo; os esportes não podem, aqui, em nenhuma
hipótese, reforçar a igualdade.
Ainda
assim, se o futebol esse esporte sem história e sem tradição mobiliza
identidades, o que podemos dizer do baseball? No caso do baseball é tal o
entrelaçamento entre a vida pública e a vida privada, que um jornalista observou
que o ato de abrir um álbum de baseball velho é como abrir um álbum privado das
próprias famílias norte-americanas. No século XX, nos dois piores momentos da
história dos Estados Unidos – a Grande Depressão e a II Guerra Mundial – o
baseball continuou com seus campeonatos como uma mensagem às pessoas de que
tudo estava “normal”, e “muito bem”. Há uma frase, na adaptação
norte-americana do livro “Febre de Bola”, de Nick Horby, que expressa
relativamente muito bem essa percepção (cito de memória): “Sabe o que eu amo
sobre os Red Sox: chova ou faça sol, eles sempre estão lá”. Milhares de
calendários são distribuídos aos torcedores nas entradas dos jogos com a
programação completa até o final do ano. De forma ampliada, é essa ideia de
“rotina”, de um “tempo cíclico esportivo”, de um “calendário” (“schedule”) que
dita o ritmo do campo esportivo norte-americano. No inverno; futebol; na
primavera, baseball. E assim sucessivamente. Essa sensação, que experimentamos
de quatro em quatro anos, com a Copa do Mundo, é vivenciada cotidianamente no
caso dos esportes americanos: há jogos, e digo sem exagero, toda a hora todo o
dia. Em plena quarta-feira, fui assistir à partida do Giants às 13 horas: 42
mil pessoas presentes.
Dizendo o
óbvio o baseball é também a celebração das diversas narrativas sobre a nação
americana. Com Clifford Geertz, poderíamos dizer que o baseball é uma daquelas
tantas “histórias que os nativos gostam de contar sobre si mesmos”. No interior
de uma partida, ele é capaz, ao produzir grandes jogos e grandes jogadores,
mitificar certas narrativas. A história de Jackie Robinson é a dos melhores
exemplos. Devido às leis de segregação racial, os negros foram, até a metade
dos anos 1940, completamente excluídos do público e do plantel. Essa segregação,
em lugares mais radicais, notadamente, o Sul, perduraria até meados dos anos
sessenta. As Negro Leagues, que hoje foram integradas à História da Major
League Baseball e com vários jogadores integrados ao Hall da Fame do Baseball,
constituíram-se à parte do circuito de baseball tradicional. Com o sucesso
obtido em campo, a história de Jackie Robinson, “o homem que, como nenhum
outro, carregou o peso de sua raça”, é contada como o réquiem, o canto do cisne
do racismo norte-americano que eles acreditam superado.
Num sentido
mais amplo poderíamos atentar para os aspectos , o hino antes do espetáculo
procedimento padrão por aqui, no intervalo da sétima “entrada”, entoa-se, em
muitos estádios, “God Bless America”, ou “Take me out to the ball game”,
canções que fazem parte do imaginário americano. Em Boston, mais precisamente
no Fenway Park, o campo mais tradicional dos esportes americanos, tem uma
música toda própria: Sweet Caroline. Recentemente, por ocasião dos ataques
terroristas na Maratona, a música foi adotada por todos os Estados Unidos como
uma forma amainar o sofrimento dos “bostonianos”. O reportório de
alimentos também merece destaque: cachorros-quentes, hambúrgueres, sementes de
girassol, cerveja, e é claro, muito refrigerante. Mas só no baseball é que se
comem “peanuts”. Não é qualquer tipo de amendoim: é o amendoim bruto, que há de
se descascar, num exercício difícil e ritmado, ao longo da partida de baseball.
Em síntese,
não é possível dissociar o consumo da identidade. Neste caso, eles caminham de
mãos dadas, tanto porque se consome para fazer parte, quanto é porque se faz
parte que se consome. Voltando à história inicial: numa praça, aquele encontro
casual entre os dois tipos ideais da “modernidade líquida”, entre o turista e o
vagabundo, aquela camisa de mofo exibida com tanto orgulho, representava tanto
aquilo que ele tinha quanto aquilo que ele era. Produto e produtores de uma
sociedade do consumo, a lógica esportiva é o produto de uma sociedade em que é
difícil separar o “have” do “be”.
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