quinta-feira, 3 de março de 2016

Os Castores da Guilherme e a faixa proibida. Bangu X Madureira



Sábado, dia 27 de fevereiro, aconteceu um tradicional jogo do campeonato carioca, Bangu X Madureira, que poderíamos chamar de um clássico suburbano. Os dois clubes se enfrentam desde a década de 1930, sendo que nesse período houve alguns desencontros, pois ora um ora outro caiu para a segunda divisão daquele torneio local. Mesmo assim, foram 119 jogos, número nada desprezível e cujo domínio de vitórias é do Bangu, 65 contra 29.

Embora seja uma partida tradicional, é a primeira vez que a assisto. Nunca havia visto esse duelo, nem mesmo pela televisão. Aliás não sei dizer se algum dia o clássico suburbano já foi mostrado na telinha. O importante no momento, porém, é compartilhar a estreia da Caravana nas arquibancadas de Bangu X Madureira.

A partida foi realizada no estádio Proletário Guilherme da Silveira – também conhecido como Moça Bonita -, em Bangu, ambiente ao qual estou bastante acostumada a frequentar e, justamente, por isso me senti um tanto incomodada com o tipo de tratamento dado aos torcedores, sobretudo, no que se refere à tentativa de se proibir a exposição de uma faixa de protesto nas arquibancadas.

Imediatamente lembrei do acontecido durante o jogo Corinthians X São Paulo, quando algumas faixas de protesto estendidas por parte da torcida do Corinthians foram retiradas a pedido do juiz do jogo. Há um ótimo texto "A despolitização do futebol" de Sergio Settani Giglio, Victor de Leonardo Figols e Marco Antunes de Lima que analisam esse acontecimento.

Tentarei dialogar com esse texto, comentando o que presenciei no Proletário, onde fatos parecidos ocorreram.


Rumo a Bangu, temporal e calorão numa mesma tarde

Quando desci do trem na estação Guilherme da Silveira, em Bangu, o mundo caía. Nas últimas semanas têm sido assim, no Rio de Janeiro, um calorão imenso que apenas é interrompido por algum daqueles temporais que duram menos de uma hora, mas que causam grandes estragos. Foi necessário esperar um pouco até que a chuva se aquietasse e os raios e trovões soassem menos ameaçadores, pelo menos para mim.


Eu já estava atrasada para o jogo, pois o trem teve seu fluxo interrompido, diversas vezes, ao longo do caminho. Mesmo embarcando às 14h40, na estação terminal Central do Brasil, cheguei a Bangu, somente às 15h50. Uma viagem que dura em média 45 minutos foi feita em mais de uma hora. Infelizmente andar nesse meio de transporte, no Rio de Janeiro, requer paciência e, até mesmo, certa dose de resignação, pois os problemas são constantes, sobretudo, se for semana. E principalmente quando chove muito.


Foto Leda Costa

Entrei no estádio, o jogo já havia começado e parte da torcida já cantarolava as canções de apoio ao time. Eu até que tentei ficar nas sociais onde a área é coberta, mas ao chegar na entrada dessa parte do estádio notei que um funcionário do clube monitorava o acesso a esse setor. É primeira vez que vi esse tipo de controle em Moça Bonita.

Perguntei ao funcionário, se as sociais estavam fechadas, então ele disse: “você é sócia?”, ao que respondi: “não”. Ele me informou que somente quem era sócio podia entrar naquela parte do estádio. 

Entendo esses processos de setorização, mas creio que devam ser organizados devidamente e não do modo como observei que foi feito em Bangu. Lá o critério de entrada, no referido setor, foi fundamentado no que prefiro chamar de “olhômetro” somado à velha camaradagem. Não era necessário mostrar nenhum tipo de identificação como, por exemplo, a carteira de sócio, bastava ser conhecido do funcionário ou contar com a simpatia dele.

Achei isso bastante decepcionante e uma atitude que beirava o autoritarismo, afinal as regras não estavam nada claras.


Me dirigi então para as arquibancadas descobertas, o que eu normalmente faria no segundo tempo da partida, mas que tive de antecipar. Lá tentei esquecer a chuva que caía, observando o jogo e movimento ao meu redor.

Foto Leda Costa


Aos poucos, torcedores chegavam ostentando o belo uniforme alvi-rubro do Bangu um dos únicos no país no qual vem estampado a imagem da mascote do clube. A mascote é um castor, idealizado na década de 1980, em homenagem a Castor de Andrade que por mais de 20 anos esteve à frente do clube, embora, não oficialmente. O bicheiro que também gostava de samba presidiu a Mocidade Independente de Padre Miguel e a própria Liesa (Liga Independente das escolas de samba do Rio de Janeiro), por ele fundada em 1984.

Foi basicamente do bolso de Castor que bons times do Bangu foram montados, como por exemplo, aquele que ficou em segundo lugar no campeonato brasileiro de 1985. Há, aliás, uma interessante reportagem intitulada “Castor acima do bem e do mal”, publicada na revista Placar e escrita pelo falecido jornalista Tim Lopes, que em março de 1985 acompanhou o bicheiro durante os jogos do Bangu contra o Grêmio Esportivo Brasil, nas semifinais do brasileiro daquele ano. O perfil que se delineia a partir das observações e informações dessa reportagem, mostra alguém que acompanhava de perto o cotidiano do Bangu e que mesmo não exercendo o cargo de presidente, dava a palavra final em diversas decisões. Devoto de Nossa Senhora aparecida era comum que ele liderasse uma oração entre os jogadores no vestiário, após o final das partidas. Assim como Eurico Miranda faz em São Januário, Castor costumava assistir de uma cabine especial, os jogos do Bangu no Proletário.

Como descreve Tim Lopes, Castor de Andrade parecia estar “acima do bem e do mal” vivendo à margem da lei, gozando de muitos privilégios e agenciando seu poderio financeiro a partir de uma prática criminosa que é o jogo do bicho. Mesmo que o dinheiro viesse de uma atividade ilegal, Castor era figura popular e que tinha acesso a diversas esferas da sociedade, posando ao lado de celebridades e políticos da época. Porém, ninguém o admirava mais que os torcedores do Bangu que no Maracanã em 1985 estendiam bandeiras em sua homenagem


Revista Placar, 02/08/1985, p.15

Como mostra a imagem, na década de 1980 já havia torcedores que se denominavam Castores de modo informal e um tanto situacional. Mas, em 2011, novos castores nasceram. A Castores da Guilherme desde esse ano se reúne atrás do gol, do lado direito das sociais, no estádio Proletário. É uma torcida de alento, inspirada nos moldes argentinos e que é formada, em sua maioria, por jovens moradores do bairro. Segundo consta em sua fan page, a torcida nasceu de uma derrota o que é marca significativa para sua identidade coletiva, pois que pregam o apoio incondicional ao Bangu:
Tudo começou em 2011, numa derrota de 2 x 1 pro Friburguense na semi-final da Copa Rio. Um grupo de amigos resolveu ir ao jogo e viram o comportamento estranho de boa parte da torcida Banguense, que só vaiava ou ficava quieta durante o jogo, vendo que isso só empurrava mais o Gigante da Zona Oeste para o buraco, esse grupo de amigos resolveu dar um basta nisso e veio com a missão de resgatar o amor dos Banguenses (https://www.facebook.com/CastoresdaGuilherme/info/?tab=page_info)

  
Os Castores da Guilherme protagonizaram um importante momento durante o jogo Bangu X Madureira cuja repercussão foi praticamente negligenciada pela imprensa. Faço referência a faixa estendida pela torcida e imediatamente vetada pelos seguranças do clube. O veto, entretanto, não obteve sucesso, graças a diversos torcedores que em conjunto e com diálogo insistiram em mantê-la erguida nas arquibancadas, mesmo que a contragosto de funcionários do Bangu.


A faixa proibida

No intervalo do primeiro para o segundo tempo e com o fim da chuva, a torcida começou a prender seus trapos e barras nas arquibancadas do Proletário.  Além desse material também foi colocada uma faixa que dizia “Por um Bangu forte, democrático e transparente. Reage Bangu".  

Reage Bangu é um movimento que visa promover a união de torcedores ou simpatizantes do clube, para arrecadar dinheiro e pessoas que viabilizem a elaboração de um projeto que dê ao Bangu a possibilidade de tornar-se novamente competitivo. Sendo assim, a faixa vinculava-se claramente a esse movimento cujas premissas foram abraçadas pela Castores da Guilherme.


Foto Leda Costa


Inicialmente, ela foi presa ao alambrado, porém pouco tempo depois de sua exposição, dois funcionários do Bangu acompanhados da Polícia Militar conversaram com um rapaz e o conduziram para dentro do gramado. Lá o rapaz começou a retirada da faixa com a ajuda de outros colegas de torcida.




Foto Leda Costa

Foto Leda Costa
  
Parecia que a torcida se conformaria com a proibição e guardaria a faixa. Mas fez-se o contrário. Abriram-na, novamente, e em grupo a conduziram-na para outro lugar da arquibancada, numa parte mais central em frente as sociais.

Enquanto seguravam a faixa, contavam em coro: “Ei Varella vai tomar no c….”.  Fazia-se referência a Jorge Francisco Varela presidente do Bangu desde 2007 e que costuma ser alvo de contestação de diversos torcedores que cobram mais transparência nas movimentações financeiras, assim como maiores investimentos no clube e melhorias no estádio.[1] Não tardou muito e novamente funcionários do Bangu se aproximaram para tentar proibir a faixa, o que não foi aceito pelos torcedores que reagiram afirmando que ela ficaria.

Houve empurra-empurra e forte discussão entre alguns torcedores e os funcionários que, por sua vez, afirmavam que a faixa seria retirada, pois a manifestação não estava acontecendo de modo pacífico já que fazia uso de palavrões e, sobretudo, porque fazia algo inaceitável (segundo os funcionários): “mandar um homem tomar no c….”. 

Um dos torcedores, então, argumentou que se fosse o caso, todos ali presentes deveriam ser colocados para fora, afinal aquele xingamento costuma ser repetido com frequência por grande parte dos frequentadores dos estádios. De fato, o torcedor tem razão. Sabemos que é comum o uso de palavrões vindos das arquibancadas, lançados em direções diversas, alguns com forte conteúdo sexista e homofóbico e que nem por isso cogita-se na possibilidade de pedir para que a torcida pare com esse tipo de gesto. Portanto, o argumento usado não cabe para balizar uma ordem de retirada da referida faixa, até mesmo porque nela não havia nenhum tipo de conteúdo ofensivo.





O bate-boca continuou e um dos funcionários disse que chamaria a polícia militar, ouvindo então a seguinte resposta “pode chamar, aliás, chama o GEPE (Grupamento Especial de Policiamento em Estádios) porque só sairemos daqui com um ofício que legalmente nos obrigue a tirar a faixa”. A polícia militar chegou e após alguns minutos de conversa decidiu ir embora.

A faixa permaneceu estendida até o fim do jogo.



Nesse longo tempo de negociação a torcida ainda pode comemorar um gol do Bangu que diversas pessoas sequer viram já que estavam tentando fazer valer o direito de protestar. Aliás, aqui é importante dizer que a faixa não continha nenhum tipo de incitação ao ódio ou conteúdo preconceituoso. Sendo assim, a torcida estava em acordo com o que rege o Estatuto do Torcedor no Art. 13 - Inciso IV que proíbe 

"portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou outros sinais com mensagens ofensivas, inclusive de caráter racista ou xenófobo" (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.671.htm)

Não era o caso, em Bangu. 


A despolitização do futebol

Ao comentarem o fato ocorrido no jogo Corinthians x São Paulo, os autores Sergio , Victor e Marco mostraram a falta de união entre torcedores e jogadores, no que se refere à busca por um futebol melhor organizado. No caso de Corinthians x São Paulo,  essa distância se emblematizava no gesto do zagueiro Felipe que a pedido do árbitro Luiz Flávio de Oliveira, foi até próximo os torcedores e solicitou que as faixas de protesto fossem retiradas, atitude essa tomada de modo passivo e sem questionamento algum
  
Na partida Bangu x Madureira, não houve interferência do árbitro e muito menos de algum jogador que tentasse colocar fim à manifestação. A ordem de proibição veio, ao que parece, da diretoria do Bangu, o principal alvo do protesto dos torcedores, pelo menos daqueles que em torno da faixa e que se reuniram para mantê-la exposta.

Sergio, Victor e Marco terminam seu texto afirmando que "Seria interessante que, de alguma forma, torcedores e jogadores se unissem para modificar a estrutura desse nosso futebol ou continuaremos a ter ações isoladas e que pouco alteraria, de fato, essa estrutura"


Essa união me parece mais distante quando se trata dos chamados clubes de pequeno investimento como é o caso do Bangu. Muitos desses clubes são geridos de modo precário, sobrevivendo com bastante dificuldade, sendo constantemente usados nas articulações políticas, como ocorre no processo de eleição de diversas Federações pelo país afora. Sendo assim, os clubes “pequenos” estão quase sempre ao lado do status quo, pois em troca de um pouco de dinheiro concedem apoio a manutenção de gestões que em nada contribuem para melhorias no futebol.   

O caso do Bangu parece ser mais grave, afinal é válido lembrar que seu presidente Jorge Varela é primo de Rubens Lopes, presidente da FERJ e que aliás, já presidiu o próprio Bangu de 2001 a 2002. Ou seja, a aliança com o poder estabelecido se instala dentro do próprio clube. Uma das reivindicações que constava na faixa era a de um “Bangu mais democrático” e a tentativa de proibição dessa expressão da torcida, dá mostras de que democracia não tem sido o forte do clube.

Precisamos ouvir os torcedores que são parte fundamental do futebol, o que significa ir em busca das motivações de protestos como o visto em São Paulo e o – pouco - visto em Bangu. É importante notar os torcedores para além daquelas manifestações que não contrariam um comportamento ideal esperado, o que praticamente se resumiria na demonstração de emoções domesticadas de amor ao time, de alegria por uma vitória ou tristeza por uma derrota.

Talvez por isso a equipe de jornalistas de uma emissora de TV fechada que no início do jogo havia filmado a Castores da Guilherme cantando festivamente, pouco se interessou por saber que burburinho era aquele que acontecia em torno de uma faixa. Chamada com insistência por alguns torcedores, a equipe se aproximou com certa má vontade, afirmando que apenas filmaria caso palavrões não fossem gritados. 

Na matéria que foi ao ar no dia seguinte ao jogo, falou-se da festa nas arquibancadas, deu-se um tom pitoresco ao fato de se torcer para o Bangu, mencionou-se a chuva, mas nenhuma palavra dita em relação à faixa que até foi filmada, mas como se fosse um simples pano de fundo, sem a devida menção à tentativa de censura por parte do clube. Muito menos buscou-se saber o que motivou os torcedores a protestar

Mas como disse o historiador Carlos Molinari "O Time é fraco, mas a faixa é forte" e ao final do jogo foi carregada até a entrada do estádio por alguns torcedores da Castores. 



Para aqueles que leram e sabem a origem da mascote do Bangu, a quem a torcida faz referência, pode pensar que no mínimo é irônico ver esse agrupamento de jovens defender o direito de se expressar livremente. Castor de Andrade não andava na mesma calçada da democracia e comandava o Bangu com mão pesada.

Mas os Castores de sábado eram outros e deram mostras de que as arquibancadas de futebol são espaços legítimos de manifestações justas e que visem um futebol melhor. 










[1] O movimento Reage Bangu, que é mencionado na faixa, foi criado para elaborar "um conjunto de IDEIAS e PROPOSTAS que sejam minimamente capazes de UNIR PESSOAS em torno do OBJETIVO de RESGATAR OS MELHORES MOMENTOS e as MAIS NOBRES TRADIÇÕES DO BANGU ATLÉTICO CLUBE." (http://www.reagebangu.com.br/blog/). Mas há outras manifestações contrárias à atual gestão do clube, entre as quais como é o caso da torcida Castores da Gullherme que em diversos jogos costuma gritar contra o presidente Jorge Varela. 


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