Sábado,
dia 27 de fevereiro, aconteceu um tradicional jogo do campeonato carioca, Bangu
X Madureira, que poderíamos chamar de um clássico suburbano. Os dois clubes se
enfrentam desde a década de 1930, sendo que nesse período houve alguns
desencontros, pois ora um ora outro caiu para a segunda divisão daquele torneio
local. Mesmo assim, foram 119 jogos, número nada desprezível e cujo domínio de
vitórias é do Bangu, 65 contra 29.
Embora
seja uma partida tradicional, é a primeira vez que a assisto. Nunca havia visto
esse duelo, nem mesmo pela televisão. Aliás não sei dizer se algum dia o
clássico suburbano já foi mostrado na telinha. O importante no momento, porém,
é compartilhar a estreia da Caravana nas arquibancadas de Bangu X Madureira.
A
partida foi realizada no estádio Proletário Guilherme da Silveira – também conhecido como Moça
Bonita -, em Bangu, ambiente ao qual estou bastante acostumada a frequentar
e, justamente, por isso me senti um tanto incomodada com o tipo de tratamento
dado aos torcedores, sobretudo, no que se refere à tentativa de se proibir a
exposição de uma faixa de protesto nas arquibancadas.
Imediatamente
lembrei do acontecido durante o jogo Corinthians X São Paulo, quando algumas
faixas de protesto estendidas por parte da torcida do Corinthians foram
retiradas a pedido do juiz do jogo. Há um ótimo texto "A despolitização do futebol" de Sergio Settani Giglio, Victor de Leonardo Figols e Marco Antunes de Lima que analisam esse acontecimento.
Tentarei
dialogar com esse texto, comentando o que presenciei no Proletário, onde fatos
parecidos ocorreram.
Rumo
a Bangu, temporal e calorão numa mesma tarde
Quando
desci do trem na estação Guilherme da Silveira, em Bangu, o mundo caía. Nas
últimas semanas têm sido assim, no Rio de Janeiro, um calorão imenso que apenas
é interrompido por algum daqueles temporais que duram menos de uma hora, mas
que causam grandes estragos. Foi necessário esperar um pouco até que a chuva se
aquietasse e os raios e trovões soassem menos ameaçadores, pelo menos para mim.
Eu
já estava atrasada para o jogo, pois o trem teve seu fluxo interrompido,
diversas vezes, ao longo do caminho. Mesmo embarcando às 14h40, na estação
terminal Central do Brasil, cheguei a Bangu, somente às 15h50. Uma viagem que
dura em média 45 minutos foi feita em mais de uma hora. Infelizmente andar
nesse meio de transporte, no Rio de Janeiro, requer paciência e, até mesmo,
certa dose de resignação, pois os problemas são constantes, sobretudo, se for semana. E principalmente quando chove muito.
Foto Leda Costa |
Entrei no estádio, o jogo já havia começado e parte da
torcida já cantarolava as canções de apoio ao time. Eu até que tentei ficar nas
sociais onde a área é coberta, mas ao chegar na entrada dessa parte do estádio
notei que um funcionário do clube monitorava o acesso a esse setor. É primeira
vez que vi esse tipo de controle em Moça Bonita.
Perguntei ao funcionário, se as sociais estavam fechadas,
então ele disse: “você é sócia?”, ao que respondi: “não”. Ele me informou que
somente quem era sócio podia entrar naquela parte do estádio.
Entendo esses
processos de setorização, mas creio que devam ser organizados devidamente e não
do modo como observei que foi feito em Bangu. Lá o critério de entrada, no
referido setor, foi fundamentado no que prefiro chamar de “olhômetro” somado à
velha camaradagem. Não era necessário mostrar nenhum tipo de identificação como,
por exemplo, a carteira de sócio, bastava ser conhecido do funcionário ou
contar com a simpatia dele.
Achei isso bastante decepcionante e uma atitude que beirava
o autoritarismo, afinal as regras não estavam nada claras.
Me dirigi então para as arquibancadas descobertas, o que eu
normalmente faria no segundo tempo da partida, mas que tive de antecipar. Lá
tentei esquecer a chuva que caía, observando o jogo e movimento ao meu redor.
Foto Leda Costa |
Aos poucos, torcedores chegavam ostentando o belo uniforme alvi-rubro do Bangu um dos únicos no país no qual vem estampado a imagem da
mascote do clube. A mascote é um castor, idealizado na década de 1980, em
homenagem a Castor de Andrade que por mais de 20 anos esteve à frente do clube,
embora, não oficialmente. O bicheiro que também gostava de samba presidiu a
Mocidade Independente de Padre Miguel e a própria Liesa (Liga Independente das
escolas de samba do Rio de Janeiro), por ele fundada em 1984.
Foi basicamente do bolso de Castor que bons times do Bangu
foram montados, como por exemplo, aquele que ficou em segundo lugar no
campeonato brasileiro de 1985. Há, aliás, uma interessante reportagem
intitulada “Castor acima do bem e do mal”, publicada na revista Placar e escrita pelo falecido
jornalista Tim Lopes, que em março de 1985 acompanhou o bicheiro durante os
jogos do Bangu contra o Grêmio Esportivo Brasil, nas semifinais do brasileiro
daquele ano. O perfil que se delineia a partir das observações e informações dessa
reportagem, mostra alguém que acompanhava de perto o cotidiano do Bangu e que
mesmo não exercendo o cargo de presidente, dava a palavra final em diversas
decisões. Devoto de Nossa Senhora aparecida era comum que ele liderasse uma
oração entre os jogadores no vestiário, após o final das partidas. Assim como
Eurico Miranda faz em São Januário, Castor costumava assistir de uma cabine
especial, os jogos do Bangu no Proletário.
Como descreve Tim Lopes, Castor de Andrade parecia estar
“acima do bem e do mal” vivendo à margem da lei, gozando de muitos privilégios
e agenciando seu poderio financeiro a partir de uma prática criminosa que é o
jogo do bicho. Mesmo que o dinheiro viesse de uma atividade ilegal, Castor era
figura popular e que tinha acesso a diversas esferas da sociedade, posando ao
lado de celebridades e políticos da época. Porém, ninguém o admirava mais que
os torcedores do Bangu que no Maracanã em 1985 estendiam bandeiras em sua
homenagem
Revista Placar, 02/08/1985, p.15 |
Como mostra a imagem, na década de 1980 já havia torcedores
que se denominavam Castores de modo informal e um tanto situacional. Mas, em
2011, novos castores nasceram. A Castores da Guilherme desde esse ano se reúne
atrás do gol, do lado direito das sociais, no estádio Proletário. É uma torcida
de alento, inspirada nos moldes argentinos e que é formada, em sua maioria, por
jovens moradores do bairro. Segundo consta em sua fan page, a torcida nasceu de
uma derrota o que é marca significativa para sua identidade coletiva, pois que
pregam o apoio incondicional ao Bangu:
Tudo começou em
2011, numa derrota de 2 x 1 pro Friburguense na semi-final da Copa Rio. Um
grupo de amigos resolveu ir ao jogo e viram o
comportamento estranho de boa parte da torcida Banguense, que só vaiava ou
ficava quieta durante o jogo, vendo que isso só empurrava mais o Gigante da
Zona Oeste para o buraco, esse grupo de amigos resolveu dar um basta nisso e
veio com a missão de resgatar o amor dos Banguenses ( https://www.facebook.com/CastoresdaGuilherme/info/?tab=page_info)
Os Castores da Guilherme protagonizaram um importante
momento durante o jogo Bangu X Madureira cuja repercussão foi praticamente
negligenciada pela imprensa. Faço referência a faixa estendida pela torcida e
imediatamente vetada pelos seguranças do clube. O veto, entretanto, não obteve
sucesso, graças a diversos torcedores que em conjunto e com diálogo insistiram
em mantê-la erguida nas arquibancadas, mesmo que a contragosto de funcionários
do Bangu.
A faixa proibida
No intervalo do primeiro para o segundo tempo e com o fim da
chuva, a torcida começou a prender seus trapos e barras nas arquibancadas do
Proletário. Além desse material também foi
colocada uma faixa que dizia “Por um Bangu forte, democrático e transparente. Reage Bangu".
Reage Bangu é um movimento que visa promover a união de torcedores ou simpatizantes do clube, para arrecadar dinheiro e pessoas que viabilizem a elaboração de um projeto que dê ao Bangu a possibilidade de tornar-se novamente competitivo. Sendo assim, a faixa vinculava-se claramente a esse movimento cujas premissas foram abraçadas pela Castores da Guilherme.
Foto Leda Costa |
Inicialmente, ela foi presa ao alambrado, porém pouco tempo depois de sua
exposição, dois funcionários do Bangu acompanhados da Polícia Militar
conversaram com um rapaz e o conduziram para dentro do gramado. Lá o rapaz
começou a retirada da faixa com a ajuda de outros colegas de torcida.
Foto Leda Costa |
Foto Leda Costa |
Parecia que a torcida se conformaria com a
proibição e guardaria a faixa. Mas fez-se o contrário. Abriram-na, novamente, e
em grupo a conduziram-na para outro lugar da arquibancada, numa parte mais
central em frente as sociais.
Enquanto seguravam a faixa, contavam em coro: “Ei Varella
vai tomar no c….”. Fazia-se referência a
Jorge Francisco Varela presidente do Bangu desde 2007 e que costuma ser alvo de contestação de
diversos torcedores que cobram mais transparência nas movimentações
financeiras, assim como maiores investimentos no clube e melhorias no
estádio.[1]
Não tardou muito e novamente funcionários do Bangu se aproximaram para tentar
proibir a faixa, o que não foi aceito pelos torcedores que reagiram afirmando
que ela ficaria.
Houve empurra-empurra e forte discussão entre alguns
torcedores e os funcionários que, por sua vez, afirmavam que a faixa seria retirada, pois a manifestação
não estava acontecendo de modo pacífico já que fazia uso de palavrões e, sobretudo, porque fazia algo inaceitável (segundo os funcionários): “mandar um homem tomar no c….”.
Um dos torcedores, então,
argumentou que se fosse o caso, todos ali presentes deveriam ser colocados para
fora, afinal aquele xingamento costuma ser repetido com frequência por grande
parte dos frequentadores dos estádios. De fato, o torcedor tem razão. Sabemos que é comum o uso de
palavrões vindos das arquibancadas, lançados em direções diversas, alguns com
forte conteúdo sexista e homofóbico e que nem por isso cogita-se na possibilidade
de pedir para que a torcida pare com esse tipo de gesto. Portanto, o argumento usado
não cabe para balizar uma ordem de retirada da referida faixa, até mesmo porque
nela não havia nenhum tipo de conteúdo ofensivo.
O bate-boca continuou e um dos funcionários disse que
chamaria a polícia militar, ouvindo então a seguinte resposta “pode chamar,
aliás, chama o GEPE (Grupamento Especial de Policiamento em Estádios) porque só sairemos daqui com um ofício que legalmente nos
obrigue a tirar a faixa”. A polícia militar chegou e após alguns minutos de
conversa decidiu ir embora.
A faixa permaneceu estendida até o fim do jogo.
Nesse longo tempo de negociação a torcida ainda pode
comemorar um gol do Bangu que diversas pessoas sequer viram já que estavam
tentando fazer valer o direito de protestar. Aliás, aqui é importante dizer que a
faixa não continha nenhum tipo de incitação ao ódio ou conteúdo preconceituoso.
Sendo assim, a torcida estava em acordo com o que rege o Estatuto do Torcedor no Art. 13 - Inciso IV que proíbe
"portar ou ostentar cartazes, bandeiras, símbolos ou
outros sinais com mensagens ofensivas, inclusive de caráter racista ou xenófobo" (http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.671.htm)
Não era o caso, em Bangu.
A despolitização do futebol
Ao comentarem o fato ocorrido no jogo Corinthians x São
Paulo, os autores Sergio , Victor e Marco mostraram a falta de união entre torcedores e jogadores, no que se refere à busca por um futebol melhor organizado. No caso de Corinthians x São
Paulo, essa distância se emblematizava no
gesto do zagueiro Felipe que a pedido do árbitro Luiz Flávio de Oliveira, foi até próximo os torcedores e solicitou que as faixas de
protesto fossem retiradas, atitude essa tomada de modo passivo e sem
questionamento algum
Na partida Bangu x Madureira, não houve interferência do
árbitro e muito menos de algum jogador que tentasse colocar fim à manifestação. A ordem de proibição veio, ao que parece, da diretoria
do Bangu, o principal alvo do protesto dos torcedores, pelo menos daqueles que em torno da faixa e que se reuniram para mantê-la exposta.
Sergio, Victor e Marco terminam seu texto afirmando que "Seria interessante que, de alguma forma, torcedores e jogadores se unissem para modificar a estrutura desse nosso futebol ou continuaremos a ter ações isoladas e que pouco alteraria, de fato, essa estrutura"
Essa
união me parece mais distante quando se trata dos chamados clubes de pequeno
investimento como é o caso do Bangu. Muitos desses clubes são geridos de modo
precário, sobrevivendo com bastante dificuldade, sendo constantemente usados nas
articulações políticas, como ocorre no processo de eleição de diversas
Federações pelo país afora. Sendo assim, os clubes “pequenos” estão quase
sempre ao lado do status quo, pois em troca de um pouco de dinheiro concedem
apoio a manutenção de gestões que em nada contribuem para melhorias no futebol.
O
caso do Bangu parece ser mais grave, afinal é válido lembrar que seu presidente
Jorge Varela é primo de Rubens Lopes, presidente da FERJ e que aliás, já presidiu
o próprio Bangu de 2001 a 2002. Ou seja, a aliança com o poder estabelecido se
instala dentro do próprio clube. Uma das reivindicações que constava na faixa era
a de um “Bangu mais democrático” e a tentativa de proibição dessa expressão da
torcida, dá mostras de que democracia não tem sido o forte do clube.
Precisamos ouvir os torcedores que são parte fundamental do
futebol, o que significa ir em busca das motivações de protestos como o visto
em São Paulo e o – pouco - visto em Bangu. É importante notar os torcedores
para além daquelas manifestações que não contrariam um comportamento ideal
esperado, o que praticamente se resumiria na demonstração de emoções
domesticadas de amor ao time, de alegria por uma vitória ou tristeza por uma
derrota.
Talvez por isso a equipe de jornalistas de uma emissora de
TV fechada que no início do jogo havia filmado a Castores da Guilherme cantando
festivamente, pouco se interessou por saber que burburinho era aquele que
acontecia em torno de uma faixa. Chamada com insistência por alguns torcedores,
a equipe se aproximou com certa má vontade, afirmando que apenas filmaria caso
palavrões não fossem gritados.
Na matéria que foi ao ar no dia seguinte ao jogo, falou-se da
festa nas arquibancadas, deu-se um tom pitoresco ao fato de se torcer para o
Bangu, mencionou-se a chuva, mas nenhuma palavra dita em relação à faixa que
até foi filmada, mas como se fosse um simples pano de fundo, sem a devida
menção à tentativa de censura por parte do clube. Muito menos buscou-se saber o
que motivou os torcedores a protestar
Mas como disse o historiador Carlos Molinari "O Time é fraco, mas a faixa é forte" e ao final do jogo foi carregada até a entrada do estádio por alguns torcedores da Castores.
Para aqueles que leram e sabem a origem da mascote do Bangu, a quem a torcida faz referência, pode pensar que no mínimo é irônico ver esse agrupamento de jovens defender o direito de se expressar livremente. Castor de Andrade não andava na mesma calçada da democracia e comandava o Bangu com mão pesada.
Mas os Castores de sábado eram outros e deram mostras de que as arquibancadas de futebol são espaços legítimos de manifestações justas e que visem um futebol melhor.
[1] O movimento Reage Bangu, que é mencionado na faixa, foi criado para elaborar " um conjunto de IDEIAS e PROPOSTAS que sejam minimamente capazes de UNIR PESSOAS em torno do OBJETIVO de RESGATAR OS MELHORES MOMENTOS e as MAIS NOBRES TRADIÇÕES DO BANGU ATLÉTICO CLUBE." (http://www.reagebangu.com.br/blog/). Mas há outras manifestações contrárias à atual gestão do clube, entre as quais como é o caso da torcida Castores da Gullherme que em diversos jogos costuma gritar contra o presidente Jorge Varela.
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