sábado, 2 de janeiro de 2016

Devaneios de uma mulher que ama demais futebol: diante da imensidão do Centenário (Parte I)



Fim de tarde do dia 03 de dezembro de 2015. Após ter visitado os estádios dos clubes Wanderers e River Plate, em Montevidéu, finalmente fui ao encontro Centenário e do Museu do Futebol, ali localizado. No domingo anterior, eu já havia assistido a Plaza Colonia e Peñarol, nesse mesmo estádio.

Porém, eu precisava de algo mais íntimo.

Embora goste de conhecer estádios que estejam fora do circuito mainstream do futebol, existem ocasiões em que esse aspecto se torna, absolutamente, secundário. Há estádios diante dos quais temos que ter o reconhecimento de sua grandeza, não somente no mapa do futebol, mas na história da nossa relação pessoal com esse esporte.

É o caso do Centenário, no Uruguai, país com quem futebolisticamente o Brasil mantém fortes vínculos, por causa de uma derrota. A derrota de 1950. Esse acontecimento foi importante para brasileiros, mas não menos para os uruguaios. Para ambos, o jogo do dia 16 de julho de 1950 assume papel relevante na construção da memória do futebol, assim como nas narrativas que essas as nações fazem de si mesmas.

Mas sobre 50 falemos em outra oportunidade.


Antes preciso compartilhar sentimentos, sensações e devaneios de uma mulher que ama demais futebol e que, finalmente, pisou o estádio que recebeu a final da primeira Copa do Mundo, em 1930.



A imensidão do Centenário

Recorro a Gaston Bachelard, e sua Poética do Espaço, para tentar interpretar minha visita ao Estádio Centenário, em Montevidéu, uma das tantas casas do futebol que nós torcedores temos para nos abrigar de um mundo tão caótico. Pelo menos é assim que me sinto, como uma espécie de refugiada que descobre um esconderijo seguro nas arquibancadas de um estádio. Mesmo quando ele está vazio, sem jogo e sem torcida, como foi o caso do Centenário.
Por alguns instantes, fiz desse estádio minha casa. Uma casa antiga, cheia de espaço a ser explorado nem tanto pelas pernas, mas pela minha imaginação. Não percorri exaustivamente seus cantos e nem explorei seus detalhes. Apenas andei por parte das arquibancadas. Um percurso mínimo, não porque houvesse algum impedimento para que eu prosseguisse, mas por opção.
O estádio, ao longo de sua história passou por poucas reformas e nenhuma delas afetou radicalmente a arquitetura original. Talvez essa seja uma das diferenças fundamentais em relação ao Maracanã, no Rio de Janeiro, que só faz lembrar do passado em sua estrutura externa, pois por dentro, ele é, absolutamente outro desde a sua última e grande restruturação para Copa de 2014.
O Centenário, não. Ele ainda guarda muito do passado consigo. Um passado que às vezes pode assustar e parecer fantasmagórico, sobretudo, quando entramos nos corredores do estádio aos quais acessamos após percorrermos o Museu do Futebol.
Os corredores são como um porão onde, imaginariamente, vivem os seres mais misteriosos:
Para o porão também encontraremos, sem dúvida, utilidade. Nós o racionalizaremos enumerando suas comodidades. Mas ele é em primeiro lugar o ser obscuro da casa, o ser que participa das potências subterrâneas. Sonhando com ele, concordamos com a irracionalidade das profundezas (BACHELARD, 209)


E o porão do Centenário, tem poeira, materiais antigos, alguns deles que parecem ter sido esquecidos ali e outros que costumam ser usados, mas que foram deixados enquanto não chega o momento de serem postos novamente a serviço da movimentação de pessoas. Acima dos corredores, desenham-se as arquibancadas, que vistas de baixo se mostram descascadas pelo tempo. 
Debaixo das arquibancadas








Essa aparência de fragilidade logo é substituída pela sensação de segurança quando nos dirigimos para cima.


Para sair do porão, segui a direção da luz, chegando à entrada que dá acesso às arquibancadas. Foi então que me deparei com a imensidão.
A imensidão está em nós. Está presa a uma espécie de expansão do ser que a vida refreia, que a prudência detém, mas que volta de novo na solidão. Quando estamos imóveis, estamos além; sonhamos num mundo imenso (A Imensidão íntima. A poética do espaço. (Bachelard, 317).

Sozinha, sentada no cimento, o Centenário me fez sentir estar diante de uma imensidão composta por camadas e camadas de memória, muitas das quais não foram diretamente vividas por mim, mas fruto das narrativas que cercam o Centenário e que nos chegaram – e foram construídas - por intermédio da televisão, das histórias lidas em livros, pela internet e outros modos de configuração de imaginários.

Mas é justamente assim que vivemos os mitos. E o Centenário é um estádio mítico cujo impacto sobre nossa sensibilidade é provocado, em grande medida, por sua antiguidade, nada disfarçada em sua estrutura de cimento. 




Olhando sua arquitetura, é como se eu me transportasse para 1930, ano de sua inauguração. Desse modo, me senti no centro do mundo.
Lembrei do livro Febre de bola quando Nick Hornby diz que o futebol faz a gente se sentir como se estivéssemos “no coração das coisas”.  Hornby tem razão e creio que os estádios são espaços fundamentais para que a gente assim se sinta, mesmo quando não há jogo, nem torcida, mas somente nós e as arquibancadas.

Alguns estádios têm esse poder. E o Centenário é um deles. Por isso, se eu pudesse teria permanecido por horas e horas, olhando aquele lugar onde cabe a imensidão.


Menos devaneio e um pouco de história


Estádios monumentais convergem para si grande parte das narrativas de uma Copa do Mundo. Por isso, é enganoso imaginar que a Copa de 1950 se reduziu ao Maracanã, pois diversos outros jogos ocorreram em estádios fora do Rio de Janeiro.

O mesmo se pode dizer em relação a Copa de 1930. Embora o Centenário seja o palco principal desse evento, outros estádios receberam importantes partidas, como foi o caso de França X México que, no dia 13 de julho, abriu a Copa do Mundo, no Estádio de Pocitos, pertencente ao clube Peñarol.

                                   
França X México, Estádio de Pocitos, 1930.
Fonte: http://arogeraldes.blogspot.com.br/2012/07/world-cup-1930.html

            Estádio de Pocitos, Fonte: http://estadiosdeuruguay.blogspot.com.br/2011/04/estadio-pocitos.html

Além de Pocitos, naquele mesmo dia 13 de julho, o estádio Gran Parque Central recebeu Estados Unidos x Bélgica, o que significa que os jogos inaugurais da Copa ocorreram longe do Centenário que ainda não se encontrava apto a abrir suas portas aos torcedores.


Os motivos do atraso da finalização do Centenário estavam diretamente relacionados ao curto prazo em que foi erguido. Havia menos de um ano que a pedra fundamental do estádio fora colocada, o que pode nos dar uma noção do tempo recorde de sua construção, proeza que exigiu trabalho redobrado, sobretudo, nas últimas três semanas quando a obra precisou ser dividida em três turnos ao longo de 24h.

Os motivos do atraso da finalização do Centenário estavam diretamente relacionados ao curto prazo em que foi erguido. Havia menos de um ano que a pedra fundamental do Estádio fora colocada, o que nos dá uma noção do tempo recorde em que o estádio foi erguido, o que exigiu trabalho redobrado, sobretudo, nas últimas três semanas de obra que  foi dividida em três turnos ao longo de 24h.

Museu do Futebol, Estádio Centenário. Foto Minha
O estádio Centenário foi erguido para abrigar a primeira Copa do Mundo de seleções, organizado pela FIFA. O Uruguai era um país pequeno, que respirava futebol em todos os cantos e que já havia mostrado mundialmente seu poderio com a bola, nas Olimpíadas de 1924 e 1928.


A importância da conquista nos Jogos Olímpicos se faz presente na divisão do estádio, em especial, as tribunas Olímpica, Colombes (em homenagem a medalha de ouro nas olimpíadas de Paris) e Amsterdam (ouro em 1928, olimpíadas de Amsterdã).

Museu do Futebol. Foto minha. 

O principal arquiteto do Centenário foi Juan Antonio Scasso, o mesmo que havia projetado Pocitos. Mas diferentemente do pequeno estádio do Peñarol, o Centenário foi movido por pretensões grandiosas, feito para simbolizar a força uruguaia assim como seu poder industrial. O Centenário foi o primeiro estádio do mundo construído todo em concreto armado1 e outra importante inovação para a época foi seu formato circular, em um período no qual a maioria dos estádios era retangular.2


O arquiteto Scasso se inspirou na forma de uma bombonera, mas teve dificuldades em cumprir esse desejo e o estádio foi aberto ao público, ainda inacabado. Somente a tribuna Olímpica estava completa. A Colombes e a Amsterdã tinham um anel a menos que a Olímpica. A tribuna América, a principal de todas, foi inaugurada com apenas um anel.


Como se pode perceber na foto, as Tribunas Amsterdam e Colombes estão desalinhadas em relação a tribuna América. Fonte:http://imortaisdofutebol.com/2013/03/01/craque-imortal-jose-leandro-andrade/
O Centenário passou por breves reformas ao longo dos anos de 1942, 1956, 1967 e 1995 nos quais que se realizaram Campeonatos Sul-americanos e Copas América. Assim as tribunas Colombes, Amsterdam e América, puderam se complementadas, deixando-as assim compostas pelo mesmo número de anéis.


Vista aérea do estádio, onde se pode ver que os anéis que faltavam foram completados. Fonte: http://www.panamericanworld.com/es/articulo/tu-nombre-estadio-iniciativa-del-montevideo-wanderers



Outra marca do estádio é a Torre de Los Homenajes, que fica na tribuna América. Mais uma ideia do arquiteto Scasso, provavelmente, inspirado na Art Déco e seu apreço pelo uso de materiais simples, como o concreto, assim como por estruturas altas, como é o caso da torre que mede 100 metros de altura.

Sua construção é uma homenagem aos heróis da independência uruguaia e do alto dela é possível ter uma vista privilegiada da cidade de Montevidéu.  A torre é uma espécie de sótão do estádio, afinal “A casa bem enraizada gosta de ter uma ramificação sensível ao vento, um sótão que tem barulhos de folhagem” (BACHELARD, 1978, 231).


Não subi a torre e nem mesmo procurei saber como era possível fazer isso. Me contentei em observá-la de fora e não saberia explicar exatamente os motivos dessa opção. 
Museu do Futebol, Estádio Centenário. Foto minha


A Torre vista de dentro do estádio. 


A Torre vista de fora.






PALCO À MEMÓRIA 

Na década de 1980, a Fifa passou a considerar o Centenário como um monumento histórico do futebol mundial. São sempre bem-vindas certas nomeações e reconhecimentos oficiais. Porém, independentemente desses trâmites burocráticos, o Centenário já se fazia patrimônio do futebol, por sua história que teve um início glorioso com a celebração da conquista da taça Jules Rimet, a primeira delas e, justamente, contra a Argentina, a maior rival da época.
Os diversos clássicos entre Nacional x Peñarol, as outras tantas conquistas da seleção uruguaia, e a constante presença da celebração torcedora, tudo isso ecoa pelo cimento do Centenário.
Algumas pessoas que tiverem a oportunidade de visitá-lo podem dizer que o estádio precisa de reformas, porque ele estaria decadente, velho, antiquado e, por isso, impróprio ao futebol atual.
Não é um equívoco completo fazer essas observações que têm lá suas razões de serem feitas, sobretudo, no que se refere à segurança dos torcedores, como falarei futuramente sobre o jogo que assisti entre Plaza Colonia x Peñarol.
Neste momento, uma nova menção ao Maracanã torna-se inevitável. Embora não faça parte dos apocalípticos que entendem que as transformações pelas quais esse estádio passou, tenham sido responsáveis pelo seu assassinato, acredito que sua reforma desconsiderou o fato de que os estádios são valiosos locais de memória.
Diante do Centenário, apenas reforcei em mim a crença de que os estádios – e diversos outros tipos de patrimônio - precisam de um tipo de preservação cuidadosa que não os descaracterize completamente como ocorreu com o Maracanã, no Rio de Janeiro.
Essa preocupação se intensifica no momento em que Uruguai e Argentina oficialmente pretendem se candidatar a sede da Copa de 2030. O anúncio foi feito pelos presidentes de ambos os países, respectivamente Tabaré Vásquez e Maurício Macri que em uma coletiva afirmaram que unirão forças para que os cem anos do primeiro campeonato fossem comemorados onde tudo começou.
Seria ótimo que a Copa de 2030 – ou parte dela - fosse realizada em solo uruguaio. Somente me preocupa que os discursos de modernização contidos nos planejamentos de megaeventos como a Copa do Mundo, geralmente possuem um o ímpeto fáustico no sentido usado por Marshall Berman. Esse impulso tende a considerar obsoleto e descartável tudo que possa se transformar em obstáculo a alguns planos de desenvolvimento e modernização.
Não pretendo dizer que precisamos deixar os estádios virarem ruínas, totalmente abandonados e, muito menos, proponho a inviabilidade de reformas e atualizações estruturais. Apenas acredito em modos de se preservar, mantendo-se viva a possibilidade de os objetos - os estádios, no caso -, emanarem o passado por eles guardados.
Que não retirem essa característica do Centenário e que ele continue a ser um palco à memória.
Tudo isso pensei caoticamente sentada debaixo da Torre de Los Homenajes e foi junto a ela que fiquei até chegar a hora de ir embora.

Me despedi, mirando aquela paisagem redonda “E na paisagem arredondada tudo parece repousar. O ser redondo propaga sua redondeza, propaga a calma de toda redondeza” (Bachelard, 1978, 206).






1  AINSA, Fernando. Espacios de la memoria. Lugares y paisajes de la cultura uruguaia. Montevideo: Trilce, 2008.

2  MORALES, Andrés. Identidad nacional y monumentos. El caso del estadio Centenario. Revista Digital - Buenos Aires – Año.10 - N° 80 - Enero de 2005

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