Fim de tarde do dia 03 de
dezembro de 2015. Após ter visitado os estádios dos clubes Wanderers e
River Plate, em Montevidéu, finalmente fui ao encontro Centenário e
do Museu do Futebol, ali localizado. No domingo anterior, eu já havia assistido
a Plaza Colonia e Peñarol, nesse mesmo estádio.
Porém, eu precisava de
algo mais íntimo.
Embora goste de conhecer
estádios que estejam fora do circuito mainstream do
futebol, existem ocasiões em que esse aspecto se torna,
absolutamente, secundário. Há estádios diante dos quais temos que ter
o reconhecimento de sua grandeza, não somente no mapa do futebol, mas na
história da nossa relação pessoal com esse esporte.
É o caso do Centenário, no
Uruguai, país com quem futebolisticamente o Brasil
mantém fortes vínculos, por
causa de uma derrota. A derrota de 1950. Esse acontecimento foi
importante para brasileiros, mas não menos para os uruguaios. Para ambos, o
jogo do dia 16 de julho de 1950 assume papel relevante na construção da memória
do futebol, assim como nas narrativas que essas as nações fazem de si mesmas.
Mas sobre 50 falemos em
outra oportunidade.
Antes preciso compartilhar
sentimentos, sensações e devaneios de uma mulher que ama demais futebol e que,
finalmente, pisou o estádio que recebeu a final da primeira Copa do Mundo,
em 1930.
A imensidão do
Centenário
Recorro a Gaston Bachelard, e sua Poética do Espaço, para
tentar interpretar minha visita ao Estádio Centenário, em Montevidéu, uma das
tantas casas do futebol que nós torcedores temos para nos abrigar de um mundo
tão caótico. Pelo menos é assim que me sinto, como uma espécie de refugiada que
descobre um esconderijo seguro nas arquibancadas de um estádio. Mesmo quando
ele está vazio, sem jogo e sem torcida, como foi o caso do Centenário.
Por alguns instantes, fiz desse estádio minha casa. Uma casa antiga,
cheia de espaço a ser explorado nem tanto pelas pernas, mas pela minha
imaginação. Não percorri exaustivamente seus cantos e nem explorei seus
detalhes. Apenas andei por parte das arquibancadas. Um percurso mínimo, não
porque houvesse algum impedimento para que eu prosseguisse, mas por opção.
O estádio, ao longo de sua história passou por poucas reformas e nenhuma
delas afetou radicalmente a arquitetura original. Talvez essa seja uma das
diferenças fundamentais em relação ao Maracanã, no Rio de Janeiro, que só faz
lembrar do passado em sua estrutura externa, pois por dentro, ele é,
absolutamente outro desde a sua última e grande restruturação para Copa de 2014.
O Centenário, não. Ele ainda guarda muito do passado consigo. Um passado
que às vezes pode assustar e parecer fantasmagórico, sobretudo,
quando entramos nos corredores do estádio aos quais acessamos após percorrermos
o Museu do Futebol.
Os corredores são como um porão onde, imaginariamente, vivem os seres
mais misteriosos:
Para o porão também
encontraremos, sem dúvida, utilidade. Nós o racionalizaremos enumerando suas
comodidades. Mas ele é em primeiro lugar o ser obscuro da casa, o ser
que participa das potências subterrâneas. Sonhando com ele, concordamos com a
irracionalidade das profundezas (BACHELARD, 209)
E o porão do Centenário, tem poeira, materiais antigos, alguns deles que
parecem ter sido esquecidos ali e outros que costumam ser usados, mas que foram
deixados enquanto não chega o momento de serem postos novamente a serviço da
movimentação de pessoas. Acima dos corredores, desenham-se as arquibancadas,
que vistas de baixo se mostram descascadas pelo tempo.
Debaixo das arquibancadas |
Essa aparência de fragilidade logo é substituída pela sensação de segurança quando nos dirigimos para cima.
Para sair do porão, segui a direção da luz, chegando à entrada que dá
acesso às arquibancadas. Foi então que me deparei com a imensidão.
A imensidão está em nós. Está presa a uma espécie de expansão do ser que
a vida refreia, que a prudência detém, mas que volta de novo na solidão. Quando
estamos imóveis, estamos além; sonhamos num mundo imenso (A Imensidão íntima.
A poética do espaço. (Bachelard, 317).
Sozinha, sentada no cimento, o Centenário me fez sentir estar
diante de uma imensidão composta por camadas e camadas de memória, muitas das
quais não foram diretamente vividas por mim, mas fruto das narrativas que
cercam o Centenário e que nos chegaram – e foram construídas - por intermédio
da televisão, das histórias lidas em livros, pela internet e outros modos de
configuração de imaginários.
Mas é justamente assim que vivemos os mitos. E o Centenário é
um estádio mítico cujo impacto sobre nossa sensibilidade é provocado, em grande
medida, por sua antiguidade, nada disfarçada em sua estrutura de cimento.
Olhando sua arquitetura, é como se eu me transportasse para 1930, ano de
sua inauguração. Desse modo, me senti no centro do mundo.
Lembrei do
livro Febre de bola quando Nick Hornby diz que o futebol
faz a gente se sentir como se estivéssemos “no coração das coisas”.
Hornby tem razão e creio que os estádios são espaços fundamentais para que a
gente assim se sinta, mesmo quando não há jogo, nem torcida, mas somente nós e
as arquibancadas.
Alguns estádios têm esse poder. E o Centenário é um deles. Por isso, se eu pudesse teria permanecido por horas e horas, olhando aquele lugar onde cabe a imensidão.
Menos devaneio e um
pouco de história
Estádios monumentais convergem para si grande parte das narrativas de
uma Copa do Mundo. Por isso, é enganoso imaginar que a Copa de 1950 se reduziu
ao Maracanã, pois diversos outros jogos ocorreram em estádios fora do Rio de
Janeiro.
O mesmo se pode dizer em relação a Copa de 1930. Embora o Centenário
seja o palco principal desse evento, outros estádios receberam importantes
partidas, como foi o caso de França X México que, no dia 13 de julho, abriu a
Copa do Mundo, no Estádio de Pocitos, pertencente ao clube Peñarol.
França X México, Estádio de Pocitos, 1930. Fonte: http://arogeraldes.blogspot.com.br/2012/07/world-cup-1930.html |
Estádio de Pocitos, Fonte: http://estadiosdeuruguay.blogspot.com.br/2011/04/estadio-pocitos.html
Além de Pocitos, naquele mesmo dia 13
de julho, o estádio Gran Parque Central recebeu Estados Unidos x Bélgica, o que significa que os
jogos inaugurais da Copa ocorreram longe do Centenário que ainda não se
encontrava apto a abrir suas portas aos torcedores.
Os motivos do atraso da finalização do Centenário estavam diretamente
relacionados ao curto prazo em que foi erguido. Havia menos de um ano que a
pedra fundamental do estádio fora colocada, o que pode nos dar uma noção do
tempo recorde de sua construção, proeza que exigiu trabalho redobrado,
sobretudo, nas últimas três semanas quando a obra precisou ser dividida em
três turnos ao longo de 24h.
Os
motivos do atraso da finalização do Centenário estavam diretamente
relacionados ao curto prazo em que foi erguido. Havia menos de um ano
que a pedra fundamental do Estádio fora colocada, o que nos dá uma
noção do tempo recorde em que o estádio foi erguido, o que exigiu
trabalho redobrado, sobretudo, nas últimas três semanas de obra que foi dividida em três turnos ao longo de 24h.
Museu do Futebol, Estádio Centenário. Foto Minha |
O estádio Centenário foi erguido para
abrigar a primeira Copa do Mundo de seleções, organizado pela FIFA. O Uruguai
era um país pequeno, que respirava futebol em todos os cantos e que já havia
mostrado mundialmente seu poderio com a bola, nas Olimpíadas de 1924 e 1928.
A importância da conquista nos Jogos Olímpicos se faz presente na
divisão do estádio, em especial, as tribunas Olímpica, Colombes (em homenagem a
medalha de ouro nas olimpíadas de Paris) e Amsterdam (ouro em 1928, olimpíadas
de Amsterdã).
Museu do Futebol. Foto minha. |
O principal arquiteto do Centenário foi Juan
Antonio Scasso, o mesmo que havia projetado Pocitos. Mas diferentemente
do pequeno estádio do Peñarol, o Centenário foi movido por pretensões
grandiosas, feito para simbolizar a força uruguaia assim como seu poder
industrial. O Centenário foi o primeiro estádio do mundo construído todo em
concreto armado1 e outra
importante inovação para a época foi seu formato circular, em um período no
qual a maioria dos estádios era retangular.2
O arquiteto Scasso se inspirou na forma de uma bombonera, mas teve dificuldades em cumprir esse desejo e o estádio foi aberto ao público, ainda inacabado. Somente a tribuna Olímpica estava completa. A Colombes e a Amsterdã tinham um anel a menos que a Olímpica. A tribuna América, a principal de todas, foi inaugurada com apenas um anel.
Como se pode perceber na foto, as Tribunas Amsterdam e Colombes estão desalinhadas em relação a tribuna América. Fonte:http://imortaisdofutebol.com/2013/03/01/craque-imortal-jose-leandro-andrade/
|
O
Centenário passou por breves reformas ao longo dos anos de 1942,
1956, 1967 e 1995 nos quais que se realizaram Campeonatos
Sul-americanos e Copas América. Assim as tribunas Colombes,
Amsterdam e América, puderam se complementadas,
deixando-as assim compostas pelo mesmo número de anéis.
Vista aérea do estádio, onde se pode ver que os anéis que faltavam foram completados. Fonte: http://www.panamericanworld.com/es/articulo/tu-nombre-estadio-iniciativa-del-montevideo-wanderers |
Outra marca do estádio é a Torre de Los Homenajes, que fica na tribuna
América. Mais uma ideia do arquiteto Scasso, provavelmente, inspirado na Art
Déco e seu apreço pelo uso de materiais simples, como o concreto, assim como
por estruturas altas, como é o caso da torre que mede 100 metros de altura.
Sua construção é uma homenagem aos
heróis da independência uruguaia e do alto dela é possível ter uma vista privilegiada
da cidade de Montevidéu. A torre é uma
espécie de sótão do estádio, afinal “A casa bem enraizada gosta de ter uma
ramificação sensível ao vento, um sótão que tem barulhos de folhagem”
(BACHELARD, 1978, 231).
Não subi a torre e nem mesmo procurei saber
como era possível fazer isso. Me contentei em observá-la de fora e não saberia
explicar exatamente os motivos dessa opção.
Museu do Futebol, Estádio Centenário. Foto minha |
A Torre vista de dentro do estádio. |
A Torre vista de fora. |
PALCO À MEMÓRIA
Na década de 1980, a
Fifa passou a considerar o Centenário como um monumento histórico do futebol
mundial. São sempre bem-vindas certas nomeações e reconhecimentos
oficiais. Porém, independentemente desses trâmites burocráticos, o Centenário
já se fazia patrimônio do futebol, por sua história que teve um início glorioso
com a celebração da conquista da taça Jules Rimet, a primeira delas e,
justamente, contra a Argentina, a maior rival da época.
Os diversos clássicos entre Nacional x Peñarol, as outras tantas
conquistas da seleção uruguaia, e a constante presença da celebração torcedora,
tudo isso ecoa pelo cimento do Centenário.
Algumas pessoas que tiverem a oportunidade de visitá-lo podem dizer que
o estádio precisa de reformas, porque ele estaria decadente, velho,
antiquado e, por isso, impróprio ao futebol atual.
Não é um equívoco completo fazer essas observações que têm lá suas
razões de serem feitas, sobretudo, no que se refere à segurança dos torcedores,
como falarei futuramente sobre o jogo que assisti entre Plaza Colonia
x Peñarol.
Neste momento, uma nova menção ao Maracanã torna-se inevitável. Embora
não faça parte dos apocalípticos que entendem que as transformações pelas quais
esse estádio passou, tenham sido responsáveis pelo seu assassinato, acredito
que sua reforma desconsiderou o fato de que os estádios são valiosos
locais de memória.
Diante do Centenário, apenas reforcei em mim a crença de que os estádios
– e diversos outros tipos de patrimônio - precisam de um tipo de preservação
cuidadosa que não os descaracterize completamente como ocorreu com o Maracanã,
no Rio de Janeiro.
Essa preocupação se intensifica no momento em que Uruguai e Argentina
oficialmente pretendem se candidatar a sede da Copa de 2030. O anúncio foi
feito pelos presidentes de ambos os países, respectivamente Tabaré Vásquez e
Maurício Macri que em uma coletiva afirmaram que unirão forças para que os cem
anos do primeiro campeonato fossem comemorados onde tudo começou.
Seria ótimo que a Copa de 2030 – ou parte dela - fosse realizada em solo
uruguaio. Somente me preocupa que os discursos de modernização contidos nos
planejamentos de megaeventos como a Copa do Mundo, geralmente possuem um o
ímpeto fáustico no sentido usado por Marshall Berman. Esse impulso tende a
considerar obsoleto e descartável tudo que possa se transformar em obstáculo a
alguns planos de desenvolvimento e modernização.
Não pretendo dizer que precisamos deixar os estádios virarem ruínas,
totalmente abandonados e, muito menos, proponho a inviabilidade de reformas e
atualizações estruturais. Apenas acredito em modos de se preservar, mantendo-se
viva a possibilidade de os objetos - os estádios, no caso -, emanarem o passado
por eles guardados.
Que não retirem essa característica do Centenário e que ele continue a
ser um palco à memória.
Tudo isso pensei caoticamente sentada debaixo da Torre de Los Homenajes
e foi junto a ela que fiquei até chegar a hora de ir embora.
Me despedi, mirando aquela paisagem redonda “E na paisagem arredondada
tudo parece repousar. O ser redondo propaga sua redondeza, propaga a calma de
toda redondeza” (Bachelard, 1978, 206).
1 AINSA, Fernando. Espacios de la memoria. Lugares y paisajes de la cultura uruguaia. Montevideo: Trilce, 2008.
2 MORALES,
Andrés. Identidad nacional y monumentos. El caso del estadio
Centenario. Revista Digital - Buenos Aires – Año.10 - N° 80 -
Enero de 2005
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